E
Como
o calor está muito forte, entro numa igreja e me ponho a rezar. Com
um picolé na mão esquerda, ensaio com a direita um sinal da cruz de
pura gentileza e logo caio em êxtase diante do silêncio do templo,
como sempre me ocorre em circunstâncias semelhantes.
Nenhum
padre à vista, graças a Deus, e apenas uma velha discreta num dos
bancos da frente, com o seu rosário entre as mãos. Dá-me vontade
de pedir-lhe o rosário emprestado apenas por uma hora, mas o picolé
na mão esquerda me lembra que eu não poderia manejá-lo à vontade,
e desisto do intento. De resto, o verdadeiro misticismo não depende
de pequeninas bolas de osso enfiadas num pedaço de barbante — e eu
felizmente sou um místico verdadeiro, embora sem Deus. Portanto, Ave
Maria, cheia de graça...
As
palavras, aliás, também são desnecessárias, como o provam os
mudos de nascença, e ao pensar nas palavras estarei prejudicando o
mistério da minha união perfeita com as forças absolutas do nada —
ou o nirvana, como dizia o meu professor de budismo. O certo mesmo
seria eu me despir até da roupa do corpo, cueca inclusive, e
colocar-me nu como nasci diante do Supremo Artífice do Universo, ou
que outro nome tenha, para receber-lhe as graças em sua plenitude,
sem interferência de qualquer corpo estranho. E para começar jogo
longe, embora a contragosto, o picolé de abacaxi que estava uma
delícia, e arranco fora o paletó e a gravata, e me ponho a tirar a
camisa e os sapatos, segundo a expressa recomendação do Cristo aos
que quisessem segui-lo até a morte. Em pouco tempo estou mais nu do
que são Sebastião no altar da direita, e me prostro cheio de
arrepios sobre a laje fria, o coração pulsando-me forte como um
motor de explosão.
O
tempo em que assim fico não sei dizer, mas o grito da velha beata
logo me põe, de um salto, na posição vertical, embora ainda
místico e tocado de divinos arrepios. Duas outras pessoas, que mal
acabavam de entrar, põem-se a gritar ainda mais forte do que a
velha, e logo me vejo cercado por uma pequena multidão de curiosos,
que pretende linchar-me em nome de Deus Padre Todo-Poderoso. Todos,
embora gritando, examinam-me dos pés à cabeça em minha esplêndida
nudez, sobretudo à altura do sexo e das nádegas, que é o que
parece despertar-lhes mais curiosidade e escândalo — e eu fico
como um animal acuado de encontro à parede fria, justo sob uma
imagem de são Jorge e o Dragão.
Com
a chegada do padre e de dois soldados da polícia, que também me
examinam o sexo e as outras partes pudendas, vejo-me intimado a
vestir-me mais depressa do que é do meu hábito fazer, sempre sob o
olhar vigilante da velha devota e de duas senhoritas indignadas, que
parecem querer estudar anatomia à minha custa. Levado à presença
do delegado, procuro identificar-me como sobrinho do presidente da
República, mas sem êxito, e acabo trancafiado numa enxovia sem o
mínimo de conforto e de higiene, ao lado de elementos
desclassificados e em tudo iguais aos que tenho encontrado em todas
as enxovias do mundo, seja na China como na ilha de Madagáscar. Como
eu já não tinha onde dormir, e os bancos de jardim nunca me
apeteceram, chego a achar cômoda a situação a que me acabou
levando o meu cristianismo ortodoxo, mesmo porque aqui não me
poderão linchar tão facilmente como lá fora e eu sinto necessidade
de um longo repouso para refazer minhas energias e minha paz de
espírito, tão abalada pelos últimos acontecimentos políticos.
Pelo
relógio do enforcado, que guardo como um talismã no bolso posterior
das calças, são exatamente sete horas e quarenta e cinco minutos —
presumo que da noite.
Walter Campos de Carvalho, in A Lua Vem da Ásia
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