Note-se
e medite-se. Para mim mesmo, sou anônimo; o mais fundo de meus
pensamentos não entende minhas palavras; só sabemos de nós mesmos
com muita confusão.
Titolívio
Sérvulo, esse, devia ser meu amigo. Ativo, atilado em ações,
néscio nos atos; réu de grandes dotes faladores. Cego como duas
portas. Me mostrou Orlanda — reto trouxe-ma à atual atenção.
Algo a isso o obrigasse, acho. Só a fé me vive. Sou da soldadesca
de algum general. Todo soldado tem um pouquinho de chumbo.
Depois
de drinque inconsiderado, em amena tarde, que muito me esquece. —
“Feia, frívola, antipática...” — T. impôs. Aceitei,
sem aceno. Nela eu não reparara, olhava-a indiferente como gato ante
estátua, como o belo é oblíquo.
Não
dessa feita. Porque ela não surgira apenas: desenhou-se e terna para
mim. Além de linda — incomparável — a raridade da ave. Se cada
uma pessoa é para outra-uma pessoa? Só ela me saltava aos olhos.
Fixe-se
porém que ninha ou baga eu não disse, guardei-me de apreciação.
Sou tímido. Vejo, sinto, penso, não minto. Me fecho. Eu, que não
vou nem venho. Tenho a ilusão na mão. Nasci para cristão ou sábio,
quisera ser.
E
vai, senão, que T., colado a mim, em ímpeto não inédito se
desdisse: — “Boa, fina, elegante!” — de feliz grito,
precipitando-se na matéria do quadro. Dava-lhe o quê? Indaguei-me
como.
Nada
eu lhe falara, afirmo, nem dele teria audiência. Só mesmo a mim:
fortíssimo aquele sobredito meu conceito, e que era uma ocasião
interna.
Mas,
feito um achado oracular, ele contracunhando-o, agora, pois. Já a
tinha em valia; estava-se no coincidir. Onde há uma borboleta, está
pronta a paisagem? Tácito, de lado não me entortei, como o monge se
encapuza. Rebebi, tinidamente. Tomei posição.
Daí,
dados os dias, eu amava-a — sem temor ao termo. À boa fé: mais
vale quem a amar madruga, do que quem outro verbo conjuga... Do que
de novo fiz meu silêncio.
E
vem T. — contudo, como se me segundando, em sua irreticência,
comentando meu coração. Já T. também gostava dela, e sob que
forma? Por isto assim que: para namorico, o ilícito, picirico,
queria-a que queria.
Mais
me emudeci. Abri-me a mim. De Orlanda eu, certo antes, me enamorara,
secreto efervescente. Tímido, tímidulo. Sou antigo. Onde estão os
cocheiros e os arcediagos? T. era que me copiasse, não a seu ciente.
Em segredo pondo eu minha toda concentrada energia passional tão
pulsante; de bom guerreiro.
É
de adivinhar que T. mudou, no meu ar. Súbito o incêndio, ele se
apaixonara, após, por Orlanda, andorinha do abstrato.
Transmentiu-me: o embeiço — reflexo, eco, decalque. Já éramos
ambos e três.
Escureço
que demais não me surpreendi, bofé, acima de espanto. E põe-se o
problema. Todo subsentir dá contágio, cada presença é um perigo?
Aceitam-se teorias.
T.
tocava a trombeta — miolado, atravessado, mosqueteiro — imitador
de amor. Ou eu, falso e apenas, arremedando-o por antecipação. O
futuro são respostas. Da vida, sabe-se: o que a ostra percebe do mar
e do rochedo. Inimaginemo-nos.
Foi
havendo amor. Entre mim tenho que aqui rir-me-ão, de no jogo omisso,
constante timidejante, calando-me de demonstrações. Meu amor, luar
da outra face, de Orlanda não ver. Do que o da gente, vale a
semente — o que, acho, ainda não foi dito. T. sim saía-se,
entreator.
Adão.
Eu, não. Vou ao que me há de vir, só, só, próprio. Espero —
depois, antes e durante — destinatário de algum amor. O tempo é
que é a matéria do entendimento. Quem pôs libreto e solfa? O amor
não pode ser construidamente. Ninguém tem o direito de cuidar de
si.
Pois,
que, quanto eu não dava, alferes, para ter Orlanda?
E
então T. avisou-se-me, vice-louco, com avento de casamento. Ia do
mito ao fato; o que a veneta tenta. Tudo já estava. A notícia
pegou-me em seu primeiro remoinho.
E
tugi-nem-mugi, nisso eu não tendo voto; só emoção, calada como
uma baioneta. Tive-me. O general dispõe. Me amolgam, desamolgo-me.
Valha o amuo filosófico. T. sentimentiroso, regozijado com o
relógio... Às vezes a gente é mesmo de ferro. Recentrei-me, como
peculiar aos tímidos e aos sensatos. Isto é, fui-me a dormir, a
ducentésima vez, nesse ano.
Tido
de conformar-me. Aí a minha memória desfalece. Viver é plural —
muito do que não vejo nem invejo. E atravessei, não intimidado,
aquele certo se não errado acontecimento.
Noiva
e de outro, Orlanda? Então ela não era a minha, era a de T. então.
Folguei por ambos, a isso obriguei-me. Coadunei nula raiva com
esperança incógnita, nesse meu momento. A hora se fazia pelo deve &
haver dos astros, não a aliás e talvez. Tanto sabe é quem manda; e
fino o mandante. A gente tem de viver, e o verão é longo. Retombei,
pesado, dúctil, no molde. Salvem-se cócega e mágica, para se poder
reler a vida.
Sim
sofri: como o músico atrás dos surdos ou o surdo atrás dos
dançantes; mas, com cadência. Orlanda e uma data — o tempo, t?
Vinha eu de fazer de a esquecer, ordem que traduzi e me dei. Em
esquecimento que, oculto, vazava. A quanto parece.
T.
seguia-me, brusco também padecia, inexplicada mas explicavelmente,
bom condutor. Do modo, doeu-se, descreu-se, quando um grande
acontecimento veio a não suceder. Plorava, que quase; só piscou
depois.
Nem
exultei — não querendo emprestar-lhe bafo. Na circunstância, a
outronada o induzisse, sou de conselho escasso. Eu, no caso dele...
refeito de manter-me de parte.
Pois
foi o que ele fez, mudou de amar e de amor, ora agora mandar-se-á ao
lado de uma outra mulher, certa a de Titolívio Sérvulo, a ele de
antemão destinada, da grei do exato sentir. Tive-lhe, tenho-lhe mais
amizade, não dó. Sei o que hei. Timidez paga devagar, mas paga.
E
nem sabe o tímido quanto bem calcula. À melhor fé! Como o amor se
faz é graças a dois.
Segue-se,
enfim assim, nomeadamente Orlanda — de a um tempo rimar com rosa,
astro e alabastro — aqui. Sua minha alma; seu umbigo de odalisca,
sorriso de sou-boneca, a pele toda um cheiro murmurante, olheiras
mais gratas azúis. Mesma e minha.
De
dom, viera, vinha, veio-me, até mim. Da vida sem ideia nem começo,
esmaltes de um mosaico, do mundo — obra anônima? Fique o escrito
por não dito. Sós, estampilhamo-nos. Tem-se de a algum general
render continência. Ei-la, alisa a tira da sandália, olha-se terna
ao espelho, eis-nos. Conclua-se. Somos. Sou — ou transpareço-me?
Guimarães Rosa, in Tutameia
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