sábado, 17 de dezembro de 2022

Os mortos

Esse dia que ainda se reserva aos Finados é quase desnecessário em seu simbolismo, porque os moços não reparam nele, e os maduros e os velhos têm já formado o seu sentimento da morte e dos mortos. Esta é uma conquista do tempo, e prescinde de comemorações para se consolidar. Basta o exercício de viver, para nos desprender capciosamente da vida, ou, pelo menos, para entrelaçá-la de tal jeito com a morte, que passamos a sentir essa última como forma daquela, e forma talvez mais apurada, à maneira de uma gravura que só se completa depois de provas sucessivas. Falo em gravura, e vejo à minha frente um desses originais de Goeldi, em que o esplendor noturno é raiado de vermelho ou verde, numa condensação de treva tão intensa e compacta que não se sabe como a penetra esse facho de luz deslumbrante, coexistindo daí por diante numa espécie de casamento sinistro, à primeira impressão. Não, não é sinistro. Posso informar pessoalmente que a imbricação da ideia de morte na ideia de vida não é arrasadora para o homem, senão que constitui uma das sínteses morais a que o tempo nos conduz, como parte da experiência individual.
Os que eram do mesmo sangue, os amigos e companheiros que ainda há pouco sorriam a nosso lado ou mesmo nos impacientavam lá de vez em quando (mas era tão bom que nos impacientassem, agora que nem isso recebemos deles), onde estão, onde estão? Voltamo-nos para fora de nós e não os recuperamos; mas se nos aprofundarmos um pouco, vamos encontrá-los fundidos em nosso conhecimento das coisas, incorporados à nossa maneira de andar, comer e dormir; intatos, mesmo sob a camada de esquecimento em que outra vez os sepultamos, porque, contraditoriamente, eles não se deixaram ficar esquecidos, e brincam de se fazer lembrados nas horas mais imprevistas. Dizia Kierkegaard que não há ninguém mais astucioso que o defunto. Não dispõe de nenhuma arma contra nós; entretanto nos força a nos revelarmos a nós mesmos, pela conduta que temos diante dele. O morto não é um objeto real, ensina-nos o filósofo: é apenas uma oportunidade de manifestar o que existe no vivo em contato com ele. É um teste à nossa espera: um teste de amor. Porque (ainda na lição de Kierkegaard) pensar nos mortos é o ato de amor mais desinteressado, mais livre e mais fiel, de todos que possamos conceber. Mais desinteressado, porque nem mesmo o nutre essa esperança de recompensa que os pais depositam inconscientemente no amor ao filho que vai nascer ou já nasceu: não há recompensa nenhuma a esperar de um morto; mais livre, porque o morto não está aí para nos obrigar a qualquer gesto ou sentimento, como a criança que chora, ou o pobre que nos expõe sua pobreza: podemos ignorá-lo à vontade; e mais fiel, porque mudamos continuamente de gostos e ilusões, mas ele não muda nunca, e amá-lo sempre com o mesmo amor é uma vitória sobre a nossa instabilidade sentimental.
Para os que cultivam uma concepção cristã da vida, o problema das relações entre vivo e morto se resolve pela esperança de um diálogo perene e deleitoso, que uns e outros manterão após a consumação do tempo. Mas talvez essa esperança os leve a esquecer, no plano terrestre, aqueles cuja presença esperam recuperar, num plano superior e imutável, e se amar é forma de conhecimento, esquecer equivale a negar esse conhecimento: assim, graças a uma confiança descuidada, poderiam vir a deparar com estranhos, onde esperavam encontrar amizades e amores antigos. Na verdade, é preciso estar sempre começando a amar, para amar algum dia.
Quanto aos que não nutrem essa esperança de uma família ideal e futura, esses, se não esquecem os seus mortos, não é porque algo esperem deles, mas porque não podem deixar de lembrá-los, porque os mortos habitam realmente em nós, sem que o saibamos; e começar a sabê-lo constitui um dos prêmios de envelhecer, que faz da ausência presença, e desnecessário o Dia de Finados. A morte não é triste, é serena.

Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira

Nenhum comentário:

Postar um comentário