quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

O Lobo do Mar | Capítulo 23


Ventos vigorosos e constantes empurraram o Ghost rapidamente para o norte, em direção ao bando de focas. Nós o encontramos na altura do paralelo quarenta e quatro (69), em uma região de mar bravio e tempestuoso, açoitado por um vento que arrastava os bancos de neblina em eterna procissão. Passavam dias sem que pudéssemos ver o sol ou fazer qualquer espécie de observação, até que de repente o vento varria a face do oceano e expunha as vagas cintilantes, permitindo que nos localizássemos. Às vezes sobrevinha um dia limpo, quem sabe três ou quatro, mas depois a neblina voltava a nos cobrir, parecendo mais espessa do que nunca.
A caçada se tornou arriscada, mas mesmo assim os botes eram baixados todos os dias e engolidos pela escuridão cinzenta para serem vistos novamente apenas ao cair da noite ou muito depois, surgindo ao longe, um a um, como espectros marinhos em meio ao cinza. Wainwright, o caçador que Wolf Larsen havia sequestrado com o bote e a tripulação, aproveitou o mar brumoso e conseguiu escapar. Certa manhã, desapareceu na neblina circundante com seus dois homens e nunca mais voltamos a vê-lo, embora tenhamos ficado sabendo, poucos dias depois, que eles foram de escuna em escuna e finalmente reencontraram a sua.
Eu tinha decidido fazer exatamente o mesmo, mas a oportunidade nunca apareceu. Embarcar nos botes não era algo que se encaixava nas atribuições do imediato, e, embora eu tenha feito algumas manobras astutas nesse sentido, Wolf Larsen jamais me concedeu o privilégio. Se tivesse concedido, eu teria encontrado uma maneira de levar a srta. Brewster comigo. Do modo como as coisas andavam, a situação se aproximava de um estágio que eu temia imaginar. Eu evitava pensar nisso, mas o pensamento continuava invadindo minha mente como uma assombração.
No passado, li romances marítimos nos quais não raro figurava a mulher solitária no navio cheio de homens, mas agora eu me dava conta de que nunca tinha compreendido o significado mais profundo de uma situação dessas, aquilo que os autores reprisavam e, exploravam com tanta dedicação. E eis que a situação surgia agora e eu estava cara a cara com ela. Para que ficasse extrema ao limite, bastava apenas que a mulher fosse Maud Brewster e que sua pessoa me enfeitiçasse da mesma forma que seu trabalho já havia me enfeitiçado.
Não se poderia imaginar alguém mais deslocado do cenário. Ela era uma criatura delicada e etérea, esbelta e flexível, de movimentos leves e graciosos. Eu tinha a impressão de que ela não andava, ou pelo menos não andava como o restante dos mortais. Ela possuía uma gracilidade extrema e se movia com uma airosidade indefinível, aproximando-se dos outros como uma pluma flutuante ou um pássaro capaz de bater asas sem ruído.
Ela era um pouco como a porcelana de Dresden, e eu não deixava de me impressionar com o que poderia definir como a sua fragilidade. Como naquela primeira vez em que peguei em seu braço para levá-la até a cabine, eu estava preparado para que a qualquer momento, diante de alguma pressão ou contato mais agressivo, ela se desmanchasse no chão. Nunca vi um corpo e um espírito de tão comum acordo. Se, a exemplo dos críticos, você descrevesse seus versos como sublimes e espirituais, você também estaria descrevendo o seu corpo, que parecia ser uma emanação de sua alma, como se tivesse atributos análogos e a prendesse à vida com a mais delicada corrente. Ela realmente pisava o chão de leve, e pouco havia da argila grossa em sua constituição.
Seu contraste com Wolf Larsen era chocante. Não tinham nada um do outro, eram tudo que o outro não era. Certa manhã, observei quando andavam juntos no convés e me ocorreu que representavam extremos opostos da escada da evolução humana, de um lado o cúmulo de todas as selvagerias, do outro o produto acabado da mais refinada civilização. É verdade que Wolf Larsen era dotado de um intelecto incomum, mas ele o direcionava somente para o exercício de seus instintos selvagens, e com isso se tornava um selvagem ainda mais formidável. Era um homem pesado, dotado de uma musculatura esplêndida, e, embora andasse com a firmeza e a determinação do homem físico, não havia nada de pesado em seu andar. A selva e a natureza moravam na subida e na descida de seus passos. Tinha patas de felino e era flexível e forte, sempre forte. Eu o comparava a um grande tigre, a um predador destemido. Era essa a imagem que transmitia, e o brilho penetrante que às vezes riscava seu olhar era o mesmo brilho penetrante que eu tinha observado nos olhos dos leopardos enjaulados e de outros predadores selvagens.
Naquele dia, porém, eu os vigiei enquanto andavam juntos e vi que foi ela quem decidiu encerrar o passeio. Vieram até o lugar que eu ocupava ao lado do acesso para a escada da escotilha. Embora ela não desse sinal evidente disso, senti, de alguma forma, que estava muito perturbada. Fez algum comentário vazio, olhando para mim, e deu uma risadinha leve que poderia indicar o contrário, mas vi que seus olhos voltaram a encontrar os dele involuntariamente, como se fascinados, e fugiram logo em seguida, mas não rápido o bastante para ocultar o terror que os preenchia.
Foi nos olhos dele que encontrei a causa de tanta perturbação. Eram normalmente cinzentos, frios e severos, mas agora estavam calorosos, ternos e dourados, animados por pontos luminosos que iam se apagando aos poucos ou se acumulavam até que as órbitas ficassem inundadas de um fulgor radiante. Essa talvez fosse a origem daquele tom dourado, mas o fato é que estavam dourados, instigantes e imperiosos, e ao mesmo tempo sedutores e cativantes, traindo um tipo de reivindicação e um clamor sanguíneo que mulher alguma, muito menos Maud Brewster, poderia confundir.
O terror que ela sentia também tomou conta de mim, e naquele instante de medo, o medo mais terrível que o homem pode experimentar, eu soube que a estimava de uma maneira inexprimível. A consciência de que eu a amava invadiu-me junto com o terror e, com as duas emoções esmagando meu coração e fazendo meu sangue gelar e ferver ao mesmo tempo, me senti impelido por uma força externa e superior a mim e percebi que meus olhos, contra a minha vontade, voltavam a perscrutar os olhos de Wolf Larsen. Mas ele já tinha se controlado. O tom dourado e os pontos luminosos tinham sumido. Seus olhos estavam cinzentos, frios e cintilantes quando ele fez uma mesura apressada e se retirou.
Estou com medo — ela sussurrou, tomada por um calafrio. — Estou com tanto medo.
Eu também estava com medo, e, após descobrir o quanto ela importava para mim, minha mente estava em convulsão. Mesmo assim, consegui responder com uma certa calma.
Tudo vai ficar bem, srta. Brewster. Confie em mim, tudo vai ficar bem.
Ela respondeu com um pequeno sorriso agradecido que fez meu coração disparar e começou a descer a escada da escotilha.
Fiquei muito tempo parado no mesmo lugar. Havia uma necessidade urgente de me adaptar, de avaliar a importância daquele novo aspecto das coisas. Ele tinha chegado, finalmente, o amor tinha chegado, justamente quando eu menos esperava e nas circunstâncias mais hostis. É claro que minha filosofia sempre tinha reconhecido a inevitabilidade de que o amor chamasse cedo ou tarde, mas anos seguidos de recolhimento em meio aos livros tinham me deixado desatento e despreparado.
Mas agora estava acontecendo! Maud Brewster! Minha memória recordou aquele primeiro pequeno volume em minha mesa e vi diante de meus olhos, quase palpável, a fileira de pequenos volumes na estante de minha biblioteca. Como eu tinha agradecido a chegada de cada um deles! Todo ano um novo volume chegava da editora, e para mim eram como datas especiais do ano. Eles falavam de um intelecto e um espírito semelhantes aos meus, e nesse sentido eu os recebia com camaradagem em minha mente. Agora, porém, o lugar deles era em meu coração.
Meu coração? Um abalo sacudiu meus sentimentos. Era como se eu me visse de fora, incrédulo. Maud Brewster! Humphrey van Weyden, o “peixe de sangue-frio”, o “monstro sem emoções”, o “demônio analítico”, como dizia Charley Furuseth, estava apaixonado! E então, sem mais nem menos, eivada de ceticismo, minha mente foi buscar a pequena nota biográfica do Who’s Who (70) de capa vermelha e eu disse a mim mesmo: “Ela nasceu em Cambridge e tem vinte e sete anos.” E disse em seguida: “Vinte e sete anos, e ainda descomprometida?” Mas como eu sabia que ela era descomprometida? A pontada do ciúme recém-nascido afugentou toda e qualquer descrença. Não restava dúvida. Eu sentia ciúme, logo amava. E a mulher que eu amava era Maud Brewster.
Eu, Humphrey van Weyden, estava apaixonado! E a dúvida me assolou novamente. Não que eu temesse o amor ou relutasse em assumi-lo. Pelo contrário, como o idealista profundo que eu era, minha filosofia tinha desde sempre reconhecido e valorizado o amor como a maior coisa do mundo, o objetivo e o ápice da existência, o mais refinado pináculo de júbilo e felicidade que se podia alcançar na vida, a coisa mais elevada que se podia saudar, receber e acolher no coração. Mas, agora que ele estava aqui, eu não conseguia acreditar. Não era possível que eu tivesse tanta sorte. Era muito bom, bom demais para ser verdade. Os versos de Symon me vieram à mente:

I wandered all these years among
a world of women, seeking you. (71)

E eu já tinha desistido de procurar. Decidi que a maior coisa do mundo não era para mim. Furuseth tinha razão, eu era um anormal, um “monstro sem emoções”, uma estranha criatura livresca que só encontrava prazer nas experiências da mente. E, apesar de ter passado todos os meus dias cercado por mulheres, a apreciação que tinha delas era estética e nada mais. Mas agora ele tinha chegado! Embora jamais sonhado ou esperado, tinha se apresentado. Em estado de êxtase, nada menos que isso, abandonei meu posto no topo da escada da escotilha e comecei a andar pelo convés murmurando comigo mesmo aqueles lindos versos da srta. Browning (72):

I lived with visions for my company
Instead of men and women, years ago,
And found them gentle mates, nor thought to know
A sweeter music than they played to me.

Mas a canção mais bela tocava agora em meus ouvidos e eu estava cego e alheio a tudo em meu redor. A voz cortante de Wolf Larsen me trouxe de volta à realidade.
Que diabo você está fazendo? — perguntou.
Eu tinha vagado até a proa, onde os marinheiros estavam pintando, e quando dei por mim estava quase chutando uma lata de tinta.
O que é isso? Sonambulismo, insolação? — gritou.
Não. Indigestão — respondi, e continuei minha caminhada como se nada tivesse acontecido.

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(69). Por essa coordenada, podemos inferir que a escuna se encontra em algum ponto a oeste da ilha de Hokkaido, no Japão.
(70). O anuário britânico Who’s Who (“Quem é quem”), publicado desde 1849 por A&C Black e especializado na compilação de pequenas biografias de personalidades.
(71). Arthur Symons (1865-1945), poeta, crítico e editor inglês. O poema citado é “Magnificat”, de London Nights (1895), em tradução livre: “Por todos esses anos vaguei em/ um mundo de mulheres, à tua procura.”
(72). Elizabeth Barrett Browning (1806-61), uma das poetas mais importantes e populares da era vitoriana. O poema citado é a primeira quadra do Soneto 26 da obra Sonnets from the Portuguese (1850), em tradução livre: “Passei a vida tendo visões por companhia/ Em vez de homens e mulheres no passado/ Foram amigas afetuosas, e desconhecia/ Canção mais bela do que me haviam cantado.”

Jack London, in O Lobo do Mar

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