Nessa
época, vó, minha mãe estava enfrentando o câncer pela segunda
vez. Foi também quando meu pai se divorciou dela. Por mais que a
relação já não estivesse bem há muitos anos e as brigas pelas
traições do meu pai fossem constantes, ela o amava, com
ressentimento, mas amava. Nos últimos anos do casamento, ela sempre
se referia a ele com raiva, agressividade. Depois virou indiferença,
como uma música que emocionava anos atrás, mas agora não diz mais
nada. De tanto lhe pedirem, a indignação virou apatia. De tanto
pedirem calma, minha mãe ficou indiferente aos problemas do mundo e
cultivou a paz morna de uma tarde de domingo.
Mudar
a forma como a dor se manifesta não muda o que ela causa.
Glamourizam-na, romantizam-na. Essa ilusão constrói a imagem de uma
dor nobre, altiva, mas é somente um modo de nos obrigar a vivê-la,
sem questioná-la. “Homem é assim mesmo, não há o que fazer”,
e a dor é naturalizada.
Claro
que meu pai se vitimizava, mas comigo não funcionava. Era fácil
julgar quem estava sempre com raiva. Difícil era se compadecer,
tentar descobrir os motivos da raiva. E minha mãe aguentou muita
coisa. Ela me contou que tentou se separar do meu pai quando eu era
bebê. Sem ele saber, ela viajou até Piracicaba para lhe pedir
abrigo, vó, você deve se lembrar. Você a recebeu, mas não a
deixou ficar, dizendo: “Erani, o que você vai fazer sozinha com
quatro crianças? Como vai sustentá-las? Ruim com ele, pior sem
ele”. E sem escolhas ela voltou para aquele casamento e fez o
melhor que podia.
Quando
nós tivemos essa conversa, ela me disse com certa mágoa que achava
que você deveria tê-la amparado. Você fez o que sabia, argumentei.
No final das contas, apesar de tudo, meu pai havia sido um bom pai, e
ela uma boa mãe. Pra além disso, como você iria dar conta de mais
cinco pessoas na sua casa? Passamos a vida culpando as mulheres que
nos criam, assim como muitas vezes culpei minha mãe, sem olhar para
quem nos tira o chão, a casa, as oportunidades. Acabamos sempre
onerando outras mulheres pela falta de escolhas que nos é imposta.
São sempre elas que precisam abrir mão do pouco que têm para
alimentar toda a aldeia.
Tentar
fazer minha mãe lhe perdoar era romper com o espelho de imagens
distorcidas. Não estou dizendo que você não cometeu erros, vó.
Estou dizendo que minha mãe não culpou meu avô, seu marido, que
ainda era vivo quando ela quis se separar do meu pai. Antes de fazer
uma aliança entre nós, mulheres, a gente aprende a se ressentir
umas das outras, sem cogitar que os homens têm responsabilidade por
suas omissões. “Já não podemos esperar nada dos homens mesmo”,
e nessa lógica que os isenta de responsabilidades seguimos
violentando umas às outras por não suprir as faltas que não
causamos. Precisei perdoar a minha mãe por achar que não fui tão
protegida quanto eu achava que precisava ser. Por ter sido criada de
forma tão autoritária. Durante anos, eu a culpei por muita coisa na
terapia.
Aqui
eu quero cortar as correntes que nos unem pela culpa. Cada uma fez o
que sabia fazer. Cada uma fez o que foi possível. Como escrevi numa
carta póstuma à minha mãe, publicada em meu livro Quem tem medo
do feminismo negro?, não há o que perdoar, o Estado sabe muito
bem o que faz.
Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó
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