quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Cartas para minha avó

Nessa época, vó, minha mãe estava enfrentando o câncer pela segunda vez. Foi também quando meu pai se divorciou dela. Por mais que a relação já não estivesse bem há muitos anos e as brigas pelas traições do meu pai fossem constantes, ela o amava, com ressentimento, mas amava. Nos últimos anos do casamento, ela sempre se referia a ele com raiva, agressividade. Depois virou indiferença, como uma música que emocionava anos atrás, mas agora não diz mais nada. De tanto lhe pedirem, a indignação virou apatia. De tanto pedirem calma, minha mãe ficou indiferente aos problemas do mundo e cultivou a paz morna de uma tarde de domingo.
Mudar a forma como a dor se manifesta não muda o que ela causa. Glamourizam-na, romantizam-na. Essa ilusão constrói a imagem de uma dor nobre, altiva, mas é somente um modo de nos obrigar a vivê-la, sem questioná-la. “Homem é assim mesmo, não há o que fazer”, e a dor é naturalizada.
Claro que meu pai se vitimizava, mas comigo não funcionava. Era fácil julgar quem estava sempre com raiva. Difícil era se compadecer, tentar descobrir os motivos da raiva. E minha mãe aguentou muita coisa. Ela me contou que tentou se separar do meu pai quando eu era bebê. Sem ele saber, ela viajou até Piracicaba para lhe pedir abrigo, vó, você deve se lembrar. Você a recebeu, mas não a deixou ficar, dizendo: “Erani, o que você vai fazer sozinha com quatro crianças? Como vai sustentá-las? Ruim com ele, pior sem ele”. E sem escolhas ela voltou para aquele casamento e fez o melhor que podia.
Quando nós tivemos essa conversa, ela me disse com certa mágoa que achava que você deveria tê-la amparado. Você fez o que sabia, argumentei. No final das contas, apesar de tudo, meu pai havia sido um bom pai, e ela uma boa mãe. Pra além disso, como você iria dar conta de mais cinco pessoas na sua casa? Passamos a vida culpando as mulheres que nos criam, assim como muitas vezes culpei minha mãe, sem olhar para quem nos tira o chão, a casa, as oportunidades. Acabamos sempre onerando outras mulheres pela falta de escolhas que nos é imposta. São sempre elas que precisam abrir mão do pouco que têm para alimentar toda a aldeia.
Tentar fazer minha mãe lhe perdoar era romper com o espelho de imagens distorcidas. Não estou dizendo que você não cometeu erros, vó. Estou dizendo que minha mãe não culpou meu avô, seu marido, que ainda era vivo quando ela quis se separar do meu pai. Antes de fazer uma aliança entre nós, mulheres, a gente aprende a se ressentir umas das outras, sem cogitar que os homens têm responsabilidade por suas omissões. “Já não podemos esperar nada dos homens mesmo”, e nessa lógica que os isenta de responsabilidades seguimos violentando umas às outras por não suprir as faltas que não causamos. Precisei perdoar a minha mãe por achar que não fui tão protegida quanto eu achava que precisava ser. Por ter sido criada de forma tão autoritária. Durante anos, eu a culpei por muita coisa na terapia.
Aqui eu quero cortar as correntes que nos unem pela culpa. Cada uma fez o que sabia fazer. Cada uma fez o que foi possível. Como escrevi numa carta póstuma à minha mãe, publicada em meu livro Quem tem medo do feminismo negro?, não há o que perdoar, o Estado sabe muito bem o que faz.

Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó

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