sábado, 3 de dezembro de 2022

O Lobo do Mar | Capítulo 21


O desapontamento que Wolf Larsen sentia por ter sido ignorado por Maud Brewster e por mim na conversa à mesa precisava ser descarregado de alguma forma, e o papel de vítima coube a Thomas Mugridge. Ele não tinha cuidado dos modos nem da camisa, embora alegasse tê-la trocado. A peça de roupa em si não depunha a favor dessa afirmação, da mesma forma que os acúmulos de gordura no fogão, nos potes e nas panelas não indicavam nenhuma melhoria nos hábitos de limpeza.
Não faltou aviso, Mestre-Cuca — disse Wolf Larsen —, e agora você terá que engolir o remédio.
O rosto de Mugridge empalideceu por baixo da crosta de sujeira, e assim que Wolf Larsen mandou trazer uma corda e dois homens o desgraçado do cockney fugiu correndo da cozinha e fez o que pôde no convés para escapar das garras dos marujos sorridentes. Pouca coisa os deixaria mais felizes que ver o cozinheiro ser rebocado no mar, depois das gororobas e nojeiras imundas que servira ao pessoal do castelo de proa. As condições de navegação favoreciam o procedimento. O Ghost deslizava pelas águas a no máximo três milhas por hora e o mar estava bem calmo. Mas Mugridge não tinha estômago para tomar um caldo. Devia ter visto outros homens serem rebocados. Além disso, a água estava assustadoramente gelada e ele não apresentava o que se poderia chamar de uma constituição firme.
Como sempre, as vigias de folga e os caçadores subiram ao convés para acompanhar o que prometia ser um espetáculo divertido. Mugridge parecia sentir um medo violento da água e demonstrava agora uma rapidez e uma habilidade insuspeitas. Ao ser encurralado no ângulo reto entre a popa e a cozinha, pulou como um gato em cima do teto da cabine e correu em direção à popa. Mas, quando seus perseguidores anteciparam seus movimentos, ele fez o caminho de volta pela cabine, passou por cima da cozinha e alcançou o convés cruzando a escotilha da baiuca. Correu em linha reta com o remador Harrison em seu encalço, cada vez mais perto. Com um salto inesperado, porém, Mugridge agarrou-se ao estai da bujarrona. Aconteceu em um piscar de olhos. Sustentando o peso com os braços e dobrando o corpo ao meio em pleno ar, ele saiu voando com os dois pés esticados. Harrison se aproximava quando recebeu o chute bem na boca do estômago, soltando um grito involuntário, dobrando-se ao meio e caindo para trás sobre o convés.
A façanha foi recebida com palmas e gargalhadas dos caçadores ao mesmo tempo em que Mugridge, escapando de metade de seus perseguidores em volta do mastro da proa, atravessou o caminho em direção à popa como um jogador de futebol americano. Passou pelo tombadilho e manteve o curso até chegar à extremidade da proa. Estava indo tão rápido que, ao fazer a curva no canto da cabine, escorregou e caiu. Nilson estava no timão e o corpo desgovernado do cockney acertou-lhe as pernas. Os dois foram juntos ao chão, mas só Mugridge levantou. Por alguma bizarra combinação de pressões, seu corpo frágil quebrara a perna daquele homem possante, deixando-a como um cachimbo.
Parsons assumiu o timão e a perseguição continuou. Davam voltas e voltas no convés, Mugridge transtornado de medo, os marujos aos berros trocando instruções entre si, e os caçadores soltando risadas e gritos de apoio e incentivo. Mugridge se enfiou na escotilha de proa debaixo de três homens, mas conseguiu brotar do meio da massa de corpos como se fosse uma enguia, sangrando pela boca, com a famigerada camisa rasgada em tiras, e trepou no cordame do mastro principal. Foi subindo até ultrapassar as enxárcias e alcançar o topo do mastro.
Meia dúzia de marinheiros subiu até os joanetes para ir atrás dele e ficou ali esperando enquanto dois integrantes do time, Oofty-Oofty e Black (que era piloto do bote de Latimer), continuaram subindo pelos finos estais de arame, usando a força dos braços para içar seus corpos cada vez mais alto.
A investida era perigosa. Mais de trinta metros acima do convés, segurando-se somente com as mãos, eles estavam em posição difícil para se defender dos chutes de Mugridge. E Mugridge ficou chutando como um louco até que o canaca, segurando-se com apenas uma das mãos, conseguiu agarrar o pé do cockney com a outra. Black imitou a manobra no instante seguinte e agarrou o outro pé. Os três se debateram enroscados, balançando no ar, até que escorregaram e caíram nos braços dos companheiros posicionados nos joanetes.
Encerrada a batalha aérea, Thomas Mugridge foi trazido ao convés, gemendo e se contorcendo sem parar, com a boca cheia de uma espuma sangrenta. Wolf Larsen armou um laço com uma corda e o prendeu por baixo de seus braços. Ele foi arrastado até a proa e arremessado ao mar. A corda correu dez, quinze, vinte metros, até que Wolf Larsen gritou “Amarrem!”. Oofty-Oofty deu uma volta com ela ao redor de uma abita, a corda se retesou e o avanço do Ghost trouxe o cozinheiro à superfície.
Foi um espetáculo lamentável. Por mais que não pudesse se afogar e tivesse nove vidas, Thomas Mugridge estava sofrendo todas as agonias do semiafogamento. O Ghost ia muito devagar, e quando a popa era erguida por uma onda, fazendo a escuna deslizar para a frente, ela puxava o miserável até a superfície e lhe dava um momento para respirar. Entre uma subida e outra, porém, a popa mergulhava e a proa escalava preguiçosamente a onda seguinte, afrouxando a corda e deixando o cozinheiro afundar.
Eu tinha me esquecido da existência de Maud Brewster e tomei um susto quando ela se aproximou de mim sem chamar atenção. Era a primeira vez que pisava no convés desde que tinha chegado a bordo. Um silêncio mortal saudou sua chegada.
Por que tanta animação? — ela perguntou.
Pergunte ao capitão Larsen — respondi com frieza e autodomínio, embora a ideia de vê-la exposta a tanta brutalidade fizesse meu sangue ferver.
Ela acatou meu conselho e começava a se virar para pô-lo em prática quando seus olhos encontraram Oofty-Oofty, que estava bem diante dela, segurando a corda com sua postura alerta e graciosa.
Está pescando? — ela perguntou.
Ele não respondeu. Seus olhos, que observavam fixamente o mar atrás da popa, reluziram de repente.
Tubarão, senhor! — ele gritou.
Içar! Vamos, rápido! Todos ajudando! — bradou Wolf Larsen, alcançando a corda antes de todo mundo.
Mugridge tinha ouvido o grito de alerta do canaca e começado a berrar feito louco. Entrevi uma nadadeira escura cortando a água e indo em sua direção mais rápido do que éramos capazes de içá-lo. A chance de conseguirmos pegá-lo era quase a mesma do tubarão, a diferença se daria em questão de instantes. Quando Mugridge estava bem abaixo de nós, a popa desceu a ladeira de uma onda e deu mais vantagem ao tubarão. A barbatana sumiu. A barriga branca brilhou com um movimento rápido de baixo para cima. Quase com a mesma rapidez, Wolf Larsen botou toda sua força em uma puxada tremenda. O corpo do cockney saiu de dentro d’água e parte do corpo do tubarão apareceu junto. O cozinheiro encolheu as pernas e o devorador de homens pareceu apenas raspar de leve em um de seus pés, esparramando água na superfície. No entanto, Thomas Mugridge deu um berro no momento do contato. Ele chegou como um peixe fisgado no anzol, passou alto por cima da amurada, caiu de quatro no convés e rolou no chão.
Mas um rio de sangue jorrava. O pé direito tinha sido arrancado na altura do tornozelo. Voltei minha atenção instantaneamente para Maud Brewster. Seu rosto havia empalidecido e seus olhos estavam dilatados de terror. Não era para Thomas Mugridge que ela olhava fixamente, e sim para Wolf Larsen. E ele sabia muito bem disso, e após soltar uma daquelas suas risadas curtas falou:
Brincadeiras de homem, srta. Brewster. Um pouco mais violentas do que você está acostumada a ver, admito, mas ainda assim brincadeiras de homem. O tubarão não estava nos planos. Ele…
Nesse instante, porém, Mugridge, que tinha erguido a cabeça e verificado a extensão da perda, patinou pelo convés e cravou os dentes na perna de Wolf Larsen. O capitão se curvou calmamente na direção do cockney e meteu o polegar e o indicador atrás de sua mandíbula, um pouco embaixo das orelhas. A mandíbula abriu com relutância e Wolf Larsen deu um passo para o lado.
Como eu ia dizendo — continuou, como se nada fora do comum tivesse acontecido —, o tubarão não estava nos planos. Foi… poderíamos dizer… — ele pigarreou — uma intervenção divina?
Ela não deu sinais de ter escutado, embora a expressão em seus olhos tenha se reconfigurado em um desprezo indizível, momentos antes de ela virar o rosto para a cena e ir embora. Mas não foi longe, pois assim que começou a andar balançou, cambaleou e estendeu a mão fraca em minha direção. Segurei-a a tempo de impedir que caísse e levei-a para um assento dentro da cabine. Pensei que ia desmaiar de vez, mas ela conseguiu se recompor.
Poderia providenciar um torniquete,67 por favor, sr. Van Weyden? — Wolf Larsen gritou para mim.
Hesitei. Os lábios dela se moveram e não conseguiram formar as palavras, mas seus olhos me disseram com a clareza das palavras que eu deveria prestar auxílio ao pobre homem.
Por favor — ela conseguiu sussurrar por fim, e não tive alternativa a não ser obedecer.
A essa altura, eu já tinha desenvolvido tanto a minha habilidade cirúrgica que Wolf Larsen disse algumas palavras a título de conselho e foi embora, deixando-me cumprir a tarefa com um par de marujos como assistentes. Para si próprio elegeu a tarefa de vingar-se do tubarão. Um anzol pesado com isca de carne de porco seca foi lançado ao mar, e, quando terminei de comprimir e estancar as veias e artérias dilaceradas, os marinheiros já estavam cantando e içando o monstro causador da desgraça. Eu próprio não pude ver, mas meus assistentes, primeiro um e depois o outro, me abandonaram por alguns instantes para correr até o meio do barco e olhar o que estava acontecendo. O tubarão tinha cinco metros e estava pendurado no cordame do mastro principal. Suas mandíbulas foram afastadas até a abertura máxima e uma estaca resistente com as duas pontas afiadas foi inserida em sua boca de tal forma que, depois de soltas, as mandíbulas não podiam fechar. Isso feito, o anzol foi cortado. O tubarão caiu de volta no mar, impotente, mas ainda de posse de todas as suas forças, condenado a morrer aos poucos de fome, uma morte em vida que ele merecia menos do que o homem que inventara tal castigo.

Jack London, in O Lobo do Mar

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