sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Laurita

A Laurita é uma mulher amarga e filosófica, e tem suas razões. Ele chamava-se Candiota e, semanas antes do casamento marcado, disse para Laurita que iria abandoná-la.
É outra? — perguntou Laurita, soerguendo-se na cama. (Nota pessoal do autor: sempre gostei muito de “soerguer-se”, mas tive poucas chances de usá-lo. Agradeço a oportunidade. Um abraço nos meus familiares. Segue a história.)
Não — respondeu Candiota —, é Outro.
Como não percebeu o O maiúsculo, Laurita pensou que o Candiota, logo o Candiota, um homem tão reto, fosse homossexual. Mas Candiota apressou-se a corrigir o engano. O Outro era o Senhor.
Fui chamado pelo Senhor.
Deus o convocara para seu ministério e Candiota não podia ter qualquer distração na sua luta contra o demônio, muito menos a Laurita, com seus mamilos tipo medalhão. Laurita não casou com o Candiota e com mais ninguém. Renunciou à sua missão, que era reproduzir tantos Candiotas quantos pudesse para ajudar o Brasil, em favor da missão do Candiota, de combater o demônio em todas as suas manifestações.
Anos depois, num baile de carnaval, Laurita julgou identificar o Candiota num grupo de homens fantasiados de legionários romanos que circulavam pelo salão com mulheres seminuas sentadas sobre os ombros. Não pôde ter certeza de que era o Candiota porque ele era o único que segurava a mulher ao contrário e tinha a cara enterrada entre as suas coxas.
Talvez não fosse o Candiota. Talvez fosse o Candiota e ele estivesse numa missão secreta para o Senhor, em território inimigo. Talvez fosse o Candiota e ele tivesse mentido para ela. Talvez fosse o Candiota e... O homem depositou a mulher que tinha sobre os ombros em cima de uma mesa, e Laurita viu que era o Candiota. Gritou para ele:
Candiota, e a sua luta contra o demônio?
E então Candiota virou-se, avistou Laurita, abriu os braços dramaticamente e respondeu:
Ele venceu!
Foi depois disso que a Laurita ficou assim, amarga e filosófica.

Luís Fernando Veríssimo, in Sexo na cabeça

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