quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Et caetera


para Néstor Ibarra

UM TEÓLOGO NA MORTE

Os anjos comunicaram-me que, quando Melanchton faleceu, ofereceram-lhe no outro mundo uma casa ilusoriamente igual à que tivera na Terra. (Para quase todos os recém-chegados à eternidade acontece o mesmo e por isso acreditam que não morreram.) Os objetos domésticos eram iguais: a mesa, a escrivaninha com suas gavetas, a biblioteca. Logo que Melanchton acordou naquele domicílio, reatou suas tarefas literárias como se não fosse um cadáver, e escreveu durante alguns dias sobre a justificação pela fé. Como era seu costume, não disse nenhuma palavra sobre a caridade. Os anjos notaram aquela omissão e mandaram pessoas interrogá-lo. Melanchton disse-lhes: “Demonstrei irrefutavelmente que a alma pode prescindir da caridade e que, para entrar no céu, basta a fé”. Dizia aquelas coisas com soberba e não sabia que já estava morto e que seu lugar não era o céu. Quando os anjos ouviram aquele discurso, abandonaram-no.
Em poucas semanas, os móveis começaram a virar fantasmas até ficar invisíveis, exceto a poltrona, a mesa, as folhas de papel e o tinteiro. Além disso, as paredes do aposento mancharam-se de cal, e o piso, de um verniz amarelo. Até sua roupa já era muito mais ordinária. Continuava, porém, escrevendo, mas, como persistisse na negação da caridade, transladaram-no a um ateliê subterrâneo, onde havia outros teólogos como ele. Lá passou alguns dias encarcerado e começou a duvidar de sua tese e permitiram-lhe voltar. Sua roupa era de couro sem curtir, mas procurou imaginar que tudo tinha sido uma mera alucinação e continuou elevando a fé e depreciando a caridade. Num entardecer sentiu frio. Percorreu então a casa e verificou que os outros aposentos já não correspondiam aos de sua moradia na Terra. Um deles estava repleto de instrumentos desconhecidos; outro tinha diminuído tanto que era impossível entrar; outro não havia mudado, mas as janelas e portas davam para grandes dunas. O quarto do fundo estava cheio de pessoas que o adoravam e que lhe repetiam que nenhum teólogo era tão sábio como ele. Aquela adoração agradou-o, mas, como algumas daquelas pessoas não tinham rosto e outros pareciam mortos, acabou por detestá-los e por desconfiar. Resolveu então escrever um elogio da caridade, mas as páginas escritas hoje apareciam amanhã apagadas. Isso aconteceu porque as compunha sem convicção.
Recebia muitas visitas de pessoas mortas havia pouco, mas sentia vergonha de se mostrar num alojamento tão sórdido. Para fazê-las crer que estava no céu, combinou com um bruxo dos do quarto do fundo, e este as enganava com simulacros de esplendor e serenidade. Mal as visitas se retiravam, reapareciam a pobreza e a cal, e às vezes um pouco antes.
As últimas notícias de Melanchton dizem que o mago e um dos homens sem rosto o levaram para as dunas e que agora é como um criado dos demônios.

(Do livro Arcana coelestia, de Emanuel Swedenborg)

A CÂMARA DAS ESTÁTUAS

Nos primeiros dias, havia no reino dos andaluzes uma cidade em que residiram seus reis e que tinha o nome de Lebtit ou Ceuta, ou Jaén. Havia um forte castelo naquela cidade, cuja porta de dois batentes não era para entrar nem mesmo para sair, mas para que a mantivessem fechada. Cada vez que um rei falecia e outro rei herdava o trono altíssimo, este acrescentava com as mãos uma fechadura nova na porta, até que foram vinte e quatro as fechaduras, uma para cada rei. Aconteceu então que um homem malvado, que não era da casa real, assenhorou-se do poder, e, em lugar de acrescentar uma fechadura, quis que as vinte e quatro anteriores fossem abertas para olhar o conteúdo daquele castelo. O vizir e os emires suplicaram-lhe que não fizesse tal coisa e esconderam dele o chaveiro de ferro e lhe disseram que acrescentar uma fechadura era mais fácil que forçar vinte e quatro, mas ele repetia com astúcia maravilhosa: “Quero examinar o conteúdo deste castelo”. Ofereceram-lhe então quantas riquezas podiam acumular em rebanhos, em ídolos cristãos, em prata e ouro, mas ele não quis desistir e abriu a porta com a mão direita (que arderá para sempre). Lá dentro os árabes estavam representados em metal e madeira, sobre seus rápidos camelos e potros, com turbantes que ondulavam sobre a espádua e alfanjes suspensos por talabartes e a lança em riste na mão direita. Todas aquelas figuras eram em relevo e projetavam sombras no chão, e um cego podia reconhecê-las mediante o simples tato, e as patas dianteiras dos cavalos não tocavam o solo e não caíam, como se tivessem empinado. Grande espanto causaram no rei aquelas primorosas figuras, e mais ainda a ordem e o silêncio perfeito que se observava nelas, porque todas olhavam para um mesmo lado, que era o poente, e não se ouvia nem uma voz nem um clarim. Era isso que havia na primeira câmara do castelo. Na segunda estava a mesa de Salomão, filho de Davi — seja para ambos a salvação! —, talhada numa única pedra esmeralda, cuja cor, como se sabe, é o verde, e cujas propriedades ocultas são indescritíveis e autênticas, porque serena as tempestades, mantém a castidade de seu portador, afugenta a disenteria e os maus espíritos, decide favoravelmente um litígio e é de grande socorro nos partos.
Na terceira acharam dois livros: um era negro e ensinava as virtudes dos metais, dos talismãs e dos dias, assim como a preparação de venenos e de contravenenos; outro era branco e não foi possível decifrar seu ensinamento, embora a escrita fosse clara. Na quarta encontraram um mapa-múndi, no qual estavam os reinos, as cidades, os mares, os castelos e os perigos, cada qual com seu nome verdadeiro e com sua precisa figura.
Na quinta encontraram um espelho em forma circular, obra de Salomão, filho de Davi — seja para ambos o perdão! —, cujo preço era alto, pois era feito de diversos metais e quem se mirasse em sua face veria os rostos de seus pais e de seus filhos, desde o primeiro Adão até os que ouvirão a Trombeta. A sexta estava cheia de elixir, do qual um único adarme bastava para mudar três mil onças de prata em três mil onças de ouro. A sétima pareceu-lhes vazia e era tão longa que o mais hábil dos arqueiros teria podido disparar uma flecha da porta sem conseguir cravá-la no fundo. Na parede final viram gravada uma inscrição terrível. O rei examinou-a e compreendeu-a, e dizia assim: “Se alguma mão abrir a porta deste castelo, os guerreiros de carne que se parecem aos guerreiros de metal da entrada se apoderarão do reino”.
Essas coisas aconteceram no ano 89 da Hégira. Antes que chegasse a seu fim, Tárik apoderou-se daquela fortaleza e derrotou aquele rei e vendeu suas mulheres e seus filhos e desolou suas terras. Assim foram se expandindo os árabes pelo reino de Andaluzia, com suas figueiras e pradarias irrigadas nas quais não se padece de sede. Quanto aos tesouros, conta-se que Tárik, filho de Zaid, remeteu-os ao califa seu senhor, que os guardou numa pirâmide.

(Do Livro das mil e uma noites, noite 272)

HISTÓRIA DOS DOIS QUE SONHARAM

O historiador arábico El Ixaqui relata este acontecimento:

Contam os homens dignos de fé (mas só Alá é onisciente e poderoso e misericordioso e não dorme) que houve no Cairo um homem possuidor de riquezas, mas tão magnânimo e liberal que perdeu tudo menos a casa de seu pai, e que se viu forçado a trabalhar para ganhar o pão. Trabalhou tanto que o sono o venceu uma noite debaixo de uma figueira de seu jardim, e viu no sonho um homem encharcado que tirou da boca uma moeda de ouro e lhe disse: “Tua fortuna está na Pérsia, em Isfarrã; vai buscá-la”. Na madrugada seguinte, acordou e empreendeu uma longa viagem e enfrentou os perigos dos desertos, das naves, dos piratas, dos idólatras, dos rios, das feras e dos homens. Chegou por fim a Isfarrã, mas no interior dessa cidade surpreendeu-o a noite, e se deitou para dormir no pátio de uma mesquita. Havia, junto da mesquita, uma casa e, por decreto de Deus Todo-Poderoso, uma quadrilha de ladrões atravessou a mesquita e meteu-se na casa; as pessoas que dormiam acordaram com o estrondo dos ladrões e pediram socorro. Os vizinhos também gritaram, até que o capitão dos guardas-noturnos do distrito acudiu com seus homens e os bandidos fugiram pelo terraço. O capitão fez vasculhar a mesquita e nela deram com o homem do Cairo, e lhe aplicaram tais açoites com varas de bambu que esteve perto da morte. Dois dias depois, recobrou os sentidos na prisão. O capitão mandou chamá-lo e disse-lhe: “Quem és, e qual é tua pátria?”. O outro declarou: “Sou da famosa cidade do Cairo e meu nome é Mohamed El Magrebi”. O capitão então lhe perguntou: “O que te trouxe à Pérsia?”. O outro optou pela verdade e disse-lhe: “Um homem me ordenou num sonho que viesse a Isfarrã, porque aqui estaria minha fortuna. Já estou em Isfarrã e vejo que a fortuna que ele prometeu devem ser os açoites que tão generosamente me deste”.
Diante de tais palavras, o capitão riu até mostrar os dentes do siso e acabou por lhe dizer: “Homem desatinado e crédulo, três vezes sonhei com uma casa na cidade do Cairo em cujo fundo há um jardim e, no jardim, um relógio de sol e além do relógio de sol uma figueira e em seguida uma fonte, e debaixo da fonte um tesouro. Não dei o menor crédito a essa mentira. Tu, porém, produto de uma mula com um demônio, foste errando de cidade em cidade, levado apenas pela fé de teu sonho. Que eu não volte a te ver em Isfarrã. Toma estas moedas e vai-te”.
O homem pegou-as e regressou à pátria. Sob a fonte de seu jardim (que era a do sonho do capitão) desenterrou o tesouro. Assim Deus lhe deu a bênção e o recompensou e exaltou. Deus é o Generoso, o Oculto.

(Do Livro das mil e uma noites, noite 351)

O BRUXO ADIADO

Em Santiago havia um deão que desejava aprender a arte da magia. Ouviu dizer que dom Illán de Toledo a conhecia mais que ninguém, e foi a Toledo procurá-lo.
No dia de sua chegada, dirigiu-se à casa de dom Illán e encontrou-o lendo num quarto afastado. Ele o recebeu com bondade e disse-lhe que adiasse o motivo da visita até depois do almoço. Indicou-lhe um aposento muito fresco e disse-lhe que sua vinda muito o alegrava. Depois de comer, o deão contou-lhe a razão da visita e pediu a ele que lhe ensinasse a ciência mágica. Dom Illán disse-lhe que adivinhava que era deão, homem de boa posição e futuro, e que tinha medo de logo ser esquecido por ele. O deão prometeu-lhe e assegurou que nunca esqueceria aquele favor, e que estaria sempre às suas ordens. Uma vez acertada a questão, explicou dom Illán que as artes mágicas não podiam ser aprendidas senão num lugar afastado, e, tomando de sua mão, levou-o a um quarto contíguo, em cujo piso havia uma grande argola de ferro. Disse antes à criada que preparasse perdizes para o jantar, mas que não as pusesse para assar até que mandasse. Juntos, os dois ergueram a argola e desceram por uma escada de pedra bem lavrada, até que pareceu ao deão que tinham descido tanto que o leito do Tejo estava sobre eles. Ao pé da escada havia uma cela e em seguida uma biblioteca e mais além uma espécie de gabinete com instrumentos mágicos. Examinaram os livros e estavam nisso quando entraram dois homens com uma carta para o deão, escrita pelo bispo, seu tio, na qual o informava de que estava muito doente e que, se quisesse encontrá-lo vivo, não demorasse. O deão ficou muito contrariado com aquelas novas, tanto pela doença do tio quanto por ter de interromper os estudos. Optou por escrever uma desculpa e enviou-a para o bispo. Três dias depois, chegaram alguns homens de luto com outras cartas para o deão, nas quais se lia que o bispo falecera, que estavam escolhendo seu sucessor e que esperavam pela graça de Deus poder elegê-lo. Diziam também que não se incomodasse em vir, já que parecia muito melhor que o elegessem na sua ausência.
Dez dias depois, vieram dois escudeiros muito bem vestidos, que se lançaram aos pés dele e beijaram suas mãos e o saudaram como bispo. Quando dom Illán viu aquelas coisas, dirigiu-se com muita alegria a nosso prelado e disse-lhe que agradecia ao Senhor que tão boas-novas tivessem chegado a sua casa. Logo lhe pediu o decanato vacante para um de seus filhos. O bispo informou-o de que reservara o decanato para seu próprio irmão, mas que decidira favorecê-lo e que partissem juntos para Santiago.
Foram os três para Santiago, onde os receberam com honrarias. Seis meses depois, o bispo recebeu mensageiros do papa, que lhe oferecia o arcebispado de Tolosa, deixando em suas mãos a nomeação de um sucessor. Quando dom Illán soube disso, lembrou-o da antiga promessa e pediu-lhe aquele título para o filho. O arcebispo informou-o de que reservara o bispado para seu próprio tio, irmão de sua mãe, mas que decidira favorecê-lo e que partissem juntos para Tolosa. Dom Illán não teve mais remédio senão assentir.
Foram os três para Tolosa, onde os receberam com honrarias e missas. Dois anos depois, o arcebispo recebeu mensageiros do papa, que lhe oferecia o capelo de cardeal, deixando em suas mãos a nomeação de um sucessor. Quando dom Illán soube disso, lembrou-o da antiga promessa e pediu-lhe aquele título para o filho. O cardeal informou-o de que reservara o arcebispado para seu próprio tio, irmão de sua mãe, mas que decidira favorecê-lo e que partissem juntos para Roma. Dom Illán não teve mais remédio senão assentir. Foram os três para Roma, onde os receberam com honrarias e missas e procissões. Quatro anos depois morreu o papa e nosso cardeal foi eleito para o papado por todos os demais. Quando dom Illán soube disso, beijou os pés de Sua Santidade, lembrou-o da antiga promessa e pediu-lhe o cardinalato para o filho. O papa ameaçou-o com a prisão, dizendo-lhe que bem sabia ele que não era mais que um bruxo e que em Toledo fora professor de artes mágicas. O miserável dom Illán disse que ia voltar para a Espanha e lhe pediu alguma coisa para comer durante o caminho. O papa não acedeu. Então dom Illán (cujo rosto havia remoçado de um modo estranho) disse com uma voz sem tremor:
Pois então terei de comer as perdizes que encomendei para esta noite.
A criada apresentou-se e dom Illán disse-lhe que as assasse. Àquelas palavras, o papa se viu na cela subterrânea em Toledo, somente deão de Santiago, e tão envergonhado de sua ingratidão que não atinava em se desculpar. Dom Illán disse que bastava aquela prova, negou-lhe sua parte das perdizes e acompanhou-o até a rua, onde lhe desejou boa viagem e se despediu dele com grande cortesia.

(Do Livro de Patrônio do infante dom Juan Manuel, que o derivou de um livro árabe: As quarenta manhãs e as quarenta noites)

O ESPELHO DE TINTA

A história sabe que o mais cruel dos governadores do Sudão foi Iácub, o Doente, que entregou seu país à iniquidade dos coletores de impostos egípcios e morreu numa câmara do palácio, no dia 14 da lua de Barmarrat, no ano de 1842. Alguns insinuam que o feiticeiro Abderramen El Masmudi (cujo nome pode ser traduzido por O Servidor do Misericordioso) acabou com ele a punhal ou veneno, mas uma morte natural é mais verossímil — já que o chamavam de o Doente. Contudo, o capitão Richard Francis Burton conversou com aquele feiticeiro no ano de 1853 e conta que ele lhe relatou o que transcrevo:
É verdade que eu padeci cativeiro no alcáçar de Iácub, o Doente, logo após a conspiração que meu irmão Ibraim forjou, com o pérfido e vão socorro dos chefes negros do Cordofão, que o denunciaram. Meu irmão pereceu pela espada, sobre a pele de sangue da justiça, mas eu me atirei aos detestáveis pés do Doente e disse-lhe que era feiticeiro e que, se me outorgasse a vida, lhe mostraria formas e aparências até mais maravilhosas que as do Fanussi khayal (a lanterna mágica). O opressor exigiu de mim uma prova imediata. Eu lhe pedi uma pena de cana, umas tesouras, uma folha grande de papel veneziano, um chifre de tinta, um braseiro, umas sementes de coentro e uma onça de benjoim. Recortei a folha em seis tiras, escrevi talismãs e invocações nas cinco primeiras, e na restante as seguintes palavras que estão no glorioso Quran: “Retiramos teu véu, e a visão de teus olhos é penetrante”. Em seguida desenhei um quadro mágico na mão direita de Iácub e lhe pedi que a entrecerrasse e verti no meio um círculo de tinta. Perguntei-lhe se percebia com clareza seu reflexo no círculo e ele respondeu que sim. Disse-lhe para não erguer os olhos. Acendi o benjoim e o coentro, e queimei as invocações no braseiro. Pedi que nomeasse a figura que desejasse olhar. Pensou e disse-me: um cavalo selvagem, o mais bonito que pastasse nos prados à borda do deserto. Olhou e viu o campo verde e tranquilo e depois um cavalo que se aproximava, ágil como um leopardo, com uma estrela branca na testa. Pediu-me uma tropilha de cavalos tão perfeitos como o primeiro, e viu no horizonte uma nuvem comprida de pó, e em seguida a tropilha. Compreendi que minha vida estava segura.
Mal despontava a luz do dia, dois soldados entraram em meu cárcere e conduziram-me à câmara do Doente, onde já me esperavam o incenso, o braseiro e a tinta. Assim foi exigindo de mim e lhe fui mostrando todas as aparências do mundo. Esse homem morto que detesto teve na mão quanto os homens mortos viram e veem os que estão vivos: as cidades, climas e reinos em que se divide a Terra, os tesouros ocultos no centro, as naves que atravessam o mar, os instrumentos da guerra, da música e da cirurgia, as graciosas mulheres, as estrelas fixas e os planetas, as cores que empregam os infiéis para pintar seus quadros detestáveis, os minerais e as plantas com os segredos e as virtudes que encerram, os anjos de prata cujo alimento é o elogio e a justificação do Senhor, a distribuição dos prêmios nas escolas, as estátuas de pássaros e de reis que há no coração das pirâmides, a sombra projetada pelo touro que sustenta a Terra e pelo peixe que está debaixo do touro, os desertos de Deus, o Misericordioso. Viu coisas impossíveis de descrever, como as ruas iluminadas a gás, e como a baleia que morre quando escuta o grito do homem. Uma vez me ordenou que mostrasse a cidade que se chama Europa. Mostrei-lhe a principal de suas ruas e creio que foi naquele caudaloso rio de homens, todos ataviados de negro e muitos com óculos, que viu pela primeira vez o Mascarado.
Essa figura, às vezes com o traje sudanês, às vezes de uniforme, mas sempre com um pano sobre o rosto, penetrou desde então nas visões. Não podia faltar e não nos detínhamos em conjecturar quem era. Contudo, as aparências do espelho de tinta, momentâneas ou imóveis no início, eram mais complexas agora; executavam sem demora minhas ordens e o tirano as seguia com clareza. É verdade que ambos costumávamos ficar extenuados. O caráter atroz das cenas era outra fonte de cansaço. Não eram senão castigos, cordas, mutilações, deleites do verdugo e do cruel.
Assim chegamos ao amanhecer do dia 14 da lua de Barmarrat. O círculo de tinta havia sido marcado na mão, o benjoim lançado no braseiro, as invocações queimadas. Estávamos os dois a sós. O Doente disse-me que lhe mostrasse um castigo inapelável e justo, porque seu coração, naquele dia, desejava ver uma morte. Mostrei-lhe os soldados com tambores, a pele estendida do bezerro, as pessoas felizes de olhar, o verdugo com a espada da justiça. Maravilhou-se com a visão e disse-me: “É Abu Kir, o que justiçou teu irmão Ibraim, aquele que ultimará teu destino quando me for concedida a ciência de convocar essas figuras sem tua ajuda”. Pediu que trouxessem o condenado. Quando o trouxeram, perturbou-se, porque era o homem inexplicável do pano branco. Ordenou-me que, antes que o matassem, lhe tirassem a máscara. Eu me atirei a seus pés e lhe disse: “Ó rei do tempo, substância e súmula do século, esta figura não é como as demais porque não sabemos seu nome nem o dos pais dela nem o da cidade que é sua pátria, de modo que eu não me atrevo a tocá-la, para não incorrer numa culpa da qual terei de prestar contas”. O Doente riu e acabou jurando que ele assumiria a culpa, se culpa houvesse. Jurou pela espada e pelo Quran. Então ordenei que despissem o condenado e que o sujeitassem sobre a pele estendida do bezerro e que lhe arrancassem a máscara. Assim se fez. Os olhos espantados de Iácub puderam por fim ver aquele rosto — que era o dele próprio. Cobriu-se de medo e loucura. Segurei-lhe a mão direita trêmula com a minha que estava firme e lhe ordenei que continuasse olhando a cerimônia de sua morte. Estava possuído pelo espelho: nem sequer procurou erguer os olhos ou derramar a tinta. Quando a espada se abateu na visão sobre a cabeça culpada, gemeu com uma voz que não me apiedou, e tombou morto no chão.
A glória esteja com Aquele que não morre e tem na mão as duas chaves do ilimitado Perdão e do infinito Castigo.

(Do livro The Lake Regions of Equatorial Africa, de R. F. Burton)

O DUPLO DE MAOMÉ

Já que na mente dos muçulmanos as ideias de Maomé e de religião estão indissoluvelmente ligadas, o Senhor ordenou que no Céu sempre os presida um espírito que faz o papel de Maomé. Esse delegado nem sempre é o mesmo. Um cidadão da Saxônia, a quem em vida os argelinos fizeram prisioneiro e que se converteu ao islã, ocupou uma vez esse cargo. Como fora cristão, falou-lhes de Jesus e disse-lhes que não era o filho de José, mas o filho de Deus; foi conveniente substituí-lo. A situação desse Maomé representativo é indicada por uma tocha, só visível para os muçulmanos.
O verdadeiro Maomé, que redigiu o Quran, já não é visível a seus adeptos. Disseram-me que no começo os presidia, mas que pretendeu dominá-los e foi exilado no Sul. Uma comunidade de muçulmanos foi instigada pelos demônios a reconhecer Maomé como Deus. Para aplacar o distúrbio, Maomé foi trazido dos infernos e exibido. Naquela ocasião eu o vi. Assemelhava-se aos espíritos corpóreos que não têm percepção interior, e seu rosto era muito escuro. Conseguiu articular as palavras: “Eu sou vosso Maomé”, e imediatamente desapareceu.

(De Vera Christiana Religio, 1771, de Emanuel Swedenborg)

Jorge Luís Borges, in História universal da infâmia

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