sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Domingo no parque | Gilberto Gil, 1967


O ano era 1967 e a cidade, São Paulo, novo centro irradiador da música brasileira com a TV Record. A emissora dominava a audiência com uma programação que apresentava um musical todas as noites em horário nobre, desde O fino da bossa, com Elis Regina e Jair Rodrigues, até Jovem Guarda, com Roberto Carlos, Erasmo e Wanderléa, além dos festivais. Estes passaram a ser os grandes eventos musicais a partir de 1965, inicialmente na TV Excelsior, quando venceu “Arrastão”, de Edu Lobo e Vinicius de Moraes, e 1966, já na Record, quando “A banda”, de Chico Buarque, e “Disparada”, de Théo de Barros e Geraldo Vandré, empataram no primeiro lugar e dividiram o país.
Os ânimos estavam exaltados, a discussão musical e o debate político, restrito pela ditadura, se misturavam com artistas e canções que representavam posições quase sempre de oposição ao governo. O festival de 1967 começou cercado de altas expectativas, os grandes nomes da nova geração de (ex-)universitários como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Edu Lobo e Geraldo Vandré, já mais amadurecidos, apresentariam suas melhores canções. As torcidas organizadas se preparavam para gritar pelos seus ídolos e vaiar todos os outros concorrentes.
A TV Record estimulava a briga entre a Jovem Guarda e a nova MPB, opondo a “música jovem” à “música brasileira” e exacerbando o nacionalismo. Seis meses antes do festival, a Record promoveu uma bizarra passeata contra a guitarra elétrica. O instrumento seria o símbolo da dominação estrangeira, mas o protesto, liderado por Elis Regina, Geraldo Vandré e Gilberto Gil, foi ridicularizado pela imprensa.
Gil (1942), que não acreditava em nada daquilo, logo viu que tinha se precipitado. Afinal, ele ficara enlouquecido com o álbum Sgt. Peppers, dos Beatles, e pensava em apresentar sua música no festival com guitarras, muitas guitarras, e outras sonoridades do rock internacional. Como os amigos e parceiros Caetano Veloso, Torquato Neto e Capinam, Gil não estava satisfeito com o nacionalismo ortodoxo da MPB e queria uma nova música brasileira, com uma linguagem pop que misturasse os ritmos nacionais com o rock e outros gêneros, num estilo que no futuro seria chamado de tropicalista.
Quando Gil mostrou a sua música a amigos e concorrentes, todos ficaram apavorados: seria muito difícil ganhar de “Domingo no parque”. Era um baião, mas um baião muito diferente de tudo o que se conhecia, com uma letra que parecia um filme, com seus closes, planos gerais e travellings em montagem fragmentada, contando a história de um triângulo amoroso que termina em sangue e morte na roda-gigante de um parque de diversões.
Para o festival, Gil encomendou ao maestro Rogério Duprat um grande arranjo de orquestra, inspirado nos de George Martin para os Beatles, e chamou um jovem trio de rock para cantar e tocar com ele: os Mutantes, com a guitarra de Sérgio Dias, o baixo de Arnaldo Baptista e os vocais e as percussões de Rita Lee.
Mesmo em um festival marcado por vaias ferozes e generalizadas, a canção de Gil impôs respeito e empolgou o público, que sentia estar diante de algo realmente novo na música brasileira. Sim, a guitarra e o baixo roqueiros se misturavam muito bem com o baião, se harmonizavam com as sonoridades clássicas das cordas e dos metais da orquestra em fraseados modernos e elegantes, em perfeita sincronia com a letra dramática e cinematográfica.
Domingo no parque” empolgou, provocou grande polêmica, mas não ganhou, embora a maioria dos concorrentes a considerassem a melhor – e mais inovadora – canção do festival. Numa disputa apertadíssima, perdeu para “Ponteio”, de Edu Lobo e Capinam, quintessência da melhor MPB possível em letra e música, enquanto Chico Buarque ficava em terceiro com “Roda viva” e Caetano Veloso, em quarto com “Alegria, alegria”.
A música brasileira nunca mais seria a mesma depois daquela noite em 1967, em que nasceu, mas ainda sem ser batizado, o Tropicalismo.

Nelson Motta, in 101 canções que tocaram o Brasil

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