sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

A Lua Vem da Ásia | Capítulo 42

Estranho como somente hoje nos tenha ocorrido a ideia de fuga.
Conversávamos os três sobre moscas e mosquitos — eu, o Dr. Keither e o anarquista de maus bofes — quando de repente me ocorreu a ideia salvadora e que logo foi acolhida com gritos de entusiasmo, seguidos de palmas e vivas expansões de alegria. Um dos guardas que se achavam junto ao portão do pátio veio discretamente inteirar-se do que se passava, mas ainda mais discretamente mudamos de assunto e começamos a procurar minhocas no asfalto.
Assim que o monstro se afastou voltamos a debater, em voz quase inaudível, os diferentes planos de fuga, e assim ficamos bem durante quase umas duas horas, com grande excitação ocular e manual por parte do inconformado anarquista, que queria executar a fuga naquele mesmo instante. O Dr. Keither, ponderado como sempre, tratava de contemporizar e invocava altos exemplos históricos, como o de Casanova por exemplo, para ver se conseguia adiar a coisa pelo menos até o dia seguinte, que era de lua vazia e por isso mais propício às grandes evasões. O anarquista, que se chamava Hernández, xingou-o com uns dois nomes feios mas acabou concordando em tese, mesmo porque ainda teria que arrumar as malas e isso lhe demandaria pelo menos uns quinze minutos.
Depois veio a questão da estratégia propriamente dita, e os desentendimentos recomeçaram com redobrada força. Entendia Hernández que deveríamos começar matando todo mundo, inclusive o padre oficiante da missa da véspera e que era um reacionário dos quatro costados, como dera prova com o seu sermão repleto de Deus; e, uma vez todos mortos, abriríamos simplesmente a porta da rua e ganharíamos a rua principal da cidade, com ar de turistas norte-americanos. O ponderadíssimo Dr. Keither porém redarguiu que o plano não era bom, porque inexequível, e sugeriu que, em vez de matarmos todos, deveríamos não matar nenhum, mesmo porque com isso se faria grande economia de munições, que no momento estavam muito caras. Eu, de minha parte, após meditar por duas vezes, sugeri que se matasse pelo menos o tal padre da missa — o que representaria, na pior das hipóteses, um padre a menos no mundo — e que fugíssemos em plena madrugada, num balão que encomendaríamos por carta ao conde Zeppelin ou a outro que aceitasse a incumbência por menor preço e em condições idênticas.
Com o toque da campainha mandando recolher os prisioneiros às suas celas privadas, a assembleia dissolveu-se temporariamente, mas estou certo de que amanhã voltaremos a debater o assunto com a mesma disposição de espírito, pois o assunto é desses que requerem pelo menos cinco horas seguidas de discussão, com pontapés e pescoções de parte a parte.
Sinceramente não acredito que o anarquista Hernández seja o companheiro ideal para uma tal empreitada, dado o seu caráter excessivamente anarquista e mesmo antropofágico, capaz de surpresas desagradáveis e nada condizentes com a boa educação que me caracteriza e sobretudo ao Dr. Keither. Não fora o cabuloso Mr. Boss, agora com a mania de mascar chiclete e de pregá-lo nos cabelos do primeiro que lhe passe pela frente, e eu convidaria para a sensacional fuga o suavíssimo príncipe Danilo, de gestos brandos e voz de contralto, que mais de uma vez já me fez sentir sua irresistível simpatia pelos meus braços musculosos e pelo meu olhar ferino mas profundamente humano. Esse príncipe Danilo, que ao contrário do nauseabundo sobrinho de Napoleão tem umas nádegas apetitosas e repletas de curvas femininas, é não só discreto ao extremo como dono de uma inteligência viva e maleável, que só poderia ser de enorme utilidade no caso dos naturais tropeços que acompanham geralmente uma fuga desesperada, mesmo em tempo de paz e com a ajuda do conde Zeppelin. Amanhã, se Mr. Boss dormir no ponto e não se mostrar tão vigilante como de costume, tentarei induzir o induzível príncipe de opereta a acompanhar-nos na aventura aérea por sobre os muros desta execrável prisão, nem que para isso tenha que beijá-lo na boca como ele tentou beijar-me outro dia no vão da escada que leva ao refeitório. Estou certo de que o Dr. Keither preferirá mil vezes o doce personagem da Viúva Alegre ao tempestuoso e meio aloucado Don Hernández Savonarola, que já uma vez lhe atirou com um pastel no meio da cara sem ao menos pedir-lhe desculpas pela indelicadeza.
Já tenho fugido muito na minha vida, desde o dia em que ainda criança fugi do ventre materno — mas esta é a primeira vez que a ideia de fuga me apavora e me deixa perplexo diante de mim mesmo, como se de antemão nossa tentativa já fosse frustrada e devêssemos pagar com a cabeça a nossa insopitável ânsia de liberdade. Qualquer coisa na atmosfera, que está pesada, me diz que esse será o passo decisivo para toda a minha vida futura, e mesmo para a salvação da minha alma depois da minha morte, pois jamais eu me perdoaria morrer no cativeiro como um rato qualquer, sem a coragem ao menos de enfrentar de peito aberto a horda de bárbaros que aqui nos retém por motivos certamente idiotas mas com toda certeza desumanos. A ter que morrer neste campo de morte, que não sei se é russo, alemão ou latino-americano, prefiro morrer lutando e, se preciso mesmo, com as minhas próprias mãos, numa autoeutanásia que nada tem a ver com o suicídio comum, tocado de medo e de desespero.

Walter Campos de Carvalho, in A Lua Vem da Ásia

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