Estranho
como somente hoje nos tenha ocorrido a ideia de fuga.
Conversávamos
os três sobre moscas e mosquitos — eu, o Dr. Keither e o
anarquista de maus bofes — quando de repente me ocorreu a ideia
salvadora e que logo foi acolhida com gritos de entusiasmo, seguidos
de palmas e vivas expansões de alegria. Um dos guardas que se
achavam junto ao portão do pátio veio discretamente inteirar-se do
que se passava, mas ainda mais discretamente mudamos de assunto e
começamos a procurar minhocas no asfalto.
Assim
que o monstro se afastou voltamos a debater, em voz quase inaudível,
os diferentes planos de fuga, e assim ficamos bem durante quase umas
duas horas, com grande excitação ocular e manual por parte do
inconformado anarquista, que queria executar a fuga naquele mesmo
instante. O Dr. Keither, ponderado como sempre, tratava de
contemporizar e invocava altos exemplos históricos, como o de
Casanova por exemplo, para ver se conseguia adiar a coisa pelo menos
até o dia seguinte, que era de lua vazia e por isso mais propício
às grandes evasões. O anarquista, que se chamava Hernández,
xingou-o com uns dois nomes feios mas acabou concordando em tese,
mesmo porque ainda teria que arrumar as malas e isso lhe demandaria
pelo menos uns quinze minutos.
Depois
veio a questão da estratégia propriamente dita, e os
desentendimentos recomeçaram com redobrada força. Entendia
Hernández que deveríamos começar matando todo mundo, inclusive o
padre oficiante da missa da véspera e que era um reacionário dos
quatro costados, como dera prova com o seu sermão repleto de Deus;
e, uma vez todos mortos, abriríamos simplesmente a porta da rua e
ganharíamos a rua principal da cidade, com ar de turistas
norte-americanos. O ponderadíssimo Dr. Keither porém redarguiu que
o plano não era bom, porque inexequível, e sugeriu que, em vez de
matarmos todos, deveríamos não matar nenhum, mesmo porque com isso
se faria grande economia de munições, que no momento estavam muito
caras. Eu, de minha parte, após meditar por duas vezes, sugeri que
se matasse pelo menos o tal padre da missa — o que representaria,
na pior das hipóteses, um padre a menos no mundo — e que
fugíssemos em plena madrugada, num balão que encomendaríamos por
carta ao conde Zeppelin ou a outro que aceitasse a incumbência por
menor preço e em condições idênticas.
Com
o toque da campainha mandando recolher os prisioneiros às suas celas
privadas, a assembleia dissolveu-se temporariamente, mas estou certo
de que amanhã voltaremos a debater o assunto com a mesma disposição
de espírito, pois o assunto é desses que requerem pelo menos cinco
horas seguidas de discussão, com pontapés e pescoções de parte a
parte.
Sinceramente
não acredito que o anarquista Hernández seja o companheiro ideal
para uma tal empreitada, dado o seu caráter excessivamente
anarquista e mesmo antropofágico, capaz de surpresas desagradáveis
e nada condizentes com a boa educação que me caracteriza e
sobretudo ao Dr. Keither. Não fora o cabuloso Mr. Boss, agora com a
mania de mascar chiclete e de pregá-lo nos cabelos do primeiro que
lhe passe pela frente, e eu convidaria para a sensacional fuga o
suavíssimo príncipe Danilo, de gestos brandos e voz de contralto,
que mais de uma vez já me fez sentir sua irresistível simpatia
pelos meus braços musculosos e pelo meu olhar ferino mas
profundamente humano. Esse príncipe Danilo, que ao contrário do
nauseabundo sobrinho de Napoleão tem umas nádegas apetitosas e
repletas de curvas femininas, é não só discreto ao extremo como
dono de uma inteligência viva e maleável, que só poderia ser de
enorme utilidade no caso dos naturais tropeços que acompanham
geralmente uma fuga desesperada, mesmo em tempo de paz e com a ajuda
do conde Zeppelin. Amanhã, se Mr. Boss dormir no ponto e não se
mostrar tão vigilante como de costume, tentarei induzir o induzível
príncipe de opereta a acompanhar-nos na aventura aérea por sobre os
muros desta execrável prisão, nem que para isso tenha que beijá-lo
na boca como ele tentou beijar-me outro dia no vão da escada que
leva ao refeitório. Estou certo de que o Dr. Keither preferirá mil
vezes o doce personagem da Viúva Alegre ao tempestuoso e meio
aloucado Don Hernández Savonarola, que já uma vez lhe atirou com um
pastel no meio da cara sem ao menos pedir-lhe desculpas pela
indelicadeza.
Já
tenho fugido muito na minha vida, desde o dia em que ainda criança
fugi do ventre materno — mas esta é a primeira vez que a ideia de
fuga me apavora e me deixa perplexo diante de mim mesmo, como se de
antemão nossa tentativa já fosse frustrada e devêssemos pagar com
a cabeça a nossa insopitável ânsia de liberdade. Qualquer coisa na
atmosfera, que está pesada, me diz que esse será o passo decisivo
para toda a minha vida futura, e mesmo para a salvação da minha
alma depois da minha morte, pois jamais eu me perdoaria morrer no
cativeiro como um rato qualquer, sem a coragem ao menos de enfrentar
de peito aberto a horda de bárbaros que aqui nos retém por motivos
certamente idiotas mas com toda certeza desumanos. A ter que morrer
neste campo de morte, que não sei se é russo, alemão ou
latino-americano, prefiro morrer lutando e, se preciso mesmo, com as
minhas próprias mãos, numa autoeutanásia que nada tem a ver com o
suicídio comum, tocado de medo e de desespero.
Walter Campos de Carvalho, in A Lua Vem da Ásia
Nenhum comentário:
Postar um comentário