quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Bem-aventurança

 


Beto fingia que estava lendo, mas observava Milí vestir a roupa, colocar os enfeites brilhantes no rosto, pintar a boca, limpar o piercing do lábio inferior com um cotonete. A bolsa, onde ela guardou uma chupeta, estava incrustada com miçangas coloridas.
Que cara é essa? Está chateado porque vou sozinha? Você não quer ir, prefere ficar agarrado nesse livro.
Para que você vai levar a chupeta?
Curtição, charme.
Sem essa.
Milí tirou a chupeta da bolsa e pôs no colo de Beto.
Está satisfeito? Não sei a que horas vou voltar.
Leva essa bobagem. Sei que você pode arranjar outra lá.
Milí sentou ao lado de Beto, no sofá.
Beto, temos que acertar a nossa vida.
Eu disse para levar a chupeta. Não quero que você quebre os dentes.
Você sabe que eu não fico rilhando os dentes, são poucos os que fazem isso, depende do temperamento, eu acho. Beto, temos que acertar a nossa vida.
Como? Eu também pego uma chupeta e vou lá ranger os dentes com a turma?
Beto, deixa de ser chato. Raramente vou a uma festa. Gosto de festas, você sabia que eu era assim.
A gente pode mudar.
Você mudou depois que passou a frequentar aquele lugar aonde as pessoas vão se confessar e dizer que ficaram limpas. Nunca pensei que você fizesse uma coisa dessas, tão pouco científico. Virou um velho de trinta anos. Não quero virar uma velha de vinte e dois anos.
Vou chegar aos cinquenta. Você vai chegar aos quarenta?
Beto, eu só quero viver com entusiasmo. E nós dois vamos chegar aos oitenta, juntos. Antes, quero me divertir um pouco.
Tomando E, rangendo os dentes, dançando com o corpo em fogo e surda de tanto ouvir música barulhenta.
Estou levando aqueles abafadores de ruído que dão no avião. Beto, por favor, você deve procurar me entender como eu procuro te entender. Não quero passar a noite lendo, sentada num sofá, como uma múmia. Eu gosto de você, mas precisamos acertar a nossa vida. Eu não me incomodo de você ficar lendo e correndo em volta da lagoa. Mas você deve me deixar fazer o que gosto. Você fazia as suas loucuras, piores que as minhas, agora não faz mais, só toma guaraná e vitaminas, eu estou reclamando?
Eu era um jovem imbecil.
Tenho só vinte e dois anos. Talvez eu também fique cansada aos vinte e oito, como aconteceu com você, ou antes, então a gente engrena normal. Mas agora, agora eu quero me divertir um pouco, não se preocupe, na festa só uso E.
Mas tem muita porcaria vendida como E que tem um excesso de PMA ou DPMA. Em pequenas doses...
Já sei que vou ouvir uma lição...
Deixa eu terminar, por favor. Em pequenas doses criam uma euforia leve, alucinações agradáveis, dão energia para dançar a noite inteira, alguns usuários sentem inspirações poéticas, êxtases místicos...
É isso que acontece comigo...
Mas uma dose maior pode elevar demais a temperatura, a pressão, os batimentos cardíacos e a pessoa entra em convulsão, em coma e morre.
Ih, cara, você está didaticamente sinistro, hoje.
Cuidado com as chinesas, também conhecidas como technos.
Lá não tem nada disso. É uma festa de família.
E também com as mitsubishi, umas vermelhas.
Lá são todas brancas.
Essas com PMA são brancas.
Eu não abuso.
Um dia você teve que ir direto da festa para o hospital, lembra?
Foi uma vez só. Eu tinha tomado muito pouca água naquela noite. E você foi um anjo, indo me pegar no Miguel Couto.
Não mistura E com baseado.
Você me disse isso quando eu usei E pela primeira vez, lembra? Ou devo dizer quando nós usamos pela primeira vez?
Foi a maior estupidez da minha vida. Você tinha só dezesseis anos.
E você só tinha vinte e quatro, era um garoto.
Um adulto, que agiu como um sórdido corruptor de menores.
Não faz essa cara, até parece que cometeu um crime horrível. Você abriu o mundo para mim, mudou minha vida para melhor. E eu estou bem, estou estudando para o vestibular, não estou? Vou passar, vou ser uma profissional competente, igual a você. Tudo isso graças ao meu namorado querido, que me estimula sempre. Fica tranquilo.
Você está muito magra.
Você gosta de mulher magra.
Promete que vai fazer aqueles exames.
Eu estou bem. Não sou nenhuma viciada.
Vou marcar o médico. Ele é amigo meu, fomos colegas na faculdade. É o Jorge, acho que já te falei dele.
Está bem, está bem, marca o médico. Mas diga a ele que eu não quero que faça a minha cabeça. Já tenho a cabeça feita. Eu estou bonita?
Parece uma árvore de natal, com todo esse glitter no rosto.
Eu te amo. Só não te dou um beijo na boca porque já me pintei. Desculpe ter te chamado de múmia. Você é o homem mais lindo do mundo. Na volta cuido de você. Eu te acordo, quando chegar. Tchau.
Beto voltou a pegar o livro. Mas não conseguia ler, apenas olhava as páginas. Ele era o culpado, tinha que fazer alguma coisa. Casar com Milí, ter um filho? Um filho causa profundas modificações numa mulher. Mas ele estaria mesmo disposto a fazer esse sacrifício? Ouviu barulho de chuva e foi à janela, olhar a rua. As luzes dos postes brilhavam no asfalto molhado. De manhã ia correr em volta da lagoa, com chuva seria até melhor.

Rubem Fonseca, in Pequenas criaturas

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