Naquela
manhã de cacimbo do mês de Junho dum ano que já não lembro, em
que cheguei naquele musseque pela mão de meu pai, a primeira pessoa
que vi foi um menino alto e forte, encostado na parede da casa da
minha madrasta. Estava olhar para mim, desconfiado e curioso, coçando
o pé descalço na esquina. Escondia qualquer coisa na palma da mão
mas cumprimentou, olhando na minha cara. Os olhos eram pequenos e não
miravam a gente direito.
— Olá,
Santo António da Toneta! — respondeu-lhe meu pai, com um sorriso.
O
rapaz deitou fora o bocado de cigarro e, sem medo e sem vergonha,
como se fosse mesmo mais-velho, insultou alto, me deixando de boca
aberta:
— Santo
António é a puta que o pariu!
O
meu pai só disse-me que aquele menino era o Zito.
1.
Quando
Carmindinha entrou com as corridas, sacudindo a água em cima dos
meninos na esteira, todos viram as cordas grossas e brancas que caíam
dos beirais de zinco, balouçadas pelo vento. Na porta aberta, o ar
fresco, o cheiro bom a terra molhada invadiu a cubata no meio das
risadas de Carmindinha e os ralhos de Sá Domingas.
— Ih,
menina! Juízo! Vir assim então com a chuva...
Desde
as dez horas aquela chuva estava cair. A cantiga das mãos da água
de muitos dedos grossos batucava nos zincos e Zeca Bunéu e Xoxombo,
nus, no quintal, abriam a boca para as nuvens encherem. Zeca tinha
vindo na casa do capitão logo que começou pingar, dona Branca não
ia aceitar aquela brincadeira de tomar banho na chuva e só mesmo no
quintal do Xoxombo podiam fazer essa coisa costumada: encher a boca
de água, fingir que bebiam e depois, parados debaixo dos pingos
quentes e grossos, gritarem para os outros meninos:
— Ená!
Vejam só! Feitiço! Bebemos agora, já estamos a mijar!
E
as cordas de água corriam pelo peito, juntavam-se em baixo da
barriga para sair depois, unidas num grande repuxo que só esses
miúdos malandros, habituados à brincadeira, conseguem com o mexer
dos ombros, do peito e da barriga.
Dos
três meninos na esteira só Zito não brincava. Calado e quieto
desde aquela hora da manhã, mirando os dedos espertos da Tunica
ganharem no Biquinho, no jogo das pedrinhas, nem mesmo quando começou
chover aceitou ir com Zeca e Xoxombo. Murmurou olhando Tunica:
— Já
sou mais velho, não vou mais no quintal!...
Andava
mesmo refilão e a sua mania antiga das palavras podres agora ainda
era maior.
Debaixo
da chuva, Xoxombo falou no Zeca:
— Pópilas,
Zeca! O Zito hoje parece é viu cazumbi!...
Zeca
Bunéu riu mas a água quente caía pesada e não respondeu.
Não,
o Zito já não era aquele menino que lhe conheciam, mais velho sim,
mas para lhes ensinar na fisga, na hora de tirar o visgo na mulemba,
na batota do jogo da bilha. Agora andava calado, gostava só ficar
perto da Carmindinha a olhar, a rondar parecia galo, e quando falava
era só para lhes disparatar. Ou então, seis horas, quando a
Antonieta, neta da vavó Xica, chegava do serviço, saía para trepar
na mulem-ba do Xoxombo sem ninguém dar conta.
— Xoxombo,
lembra aquele primo do Zito?
— Lembro.
O Chefe, da Imprensa da Cidade Alta?!
— É!
Esse é que veio mesmo lhe estragar.
— Porquê
então?
Esse
primo tinha chegado num domingo para ajudar Sebastião Mateus
arranjar o zinco da cubata, estava deixar passar água da chuva. Toda
a manhã trabalharam; de tarde ficou na conversa e o Zito, depois,
contou o primo tinha-lhe falado umas conversas mas ele não ia dizer
porque eles ainda eram monandengues. Nesse dia mostrou também o
cigarro que o Chefe tinha-lhe deixado para fumar. Com o tempo, nesses
dias que ficavam quietos, esperando o fim das águas, Zito adiantou a
história do primo: tinha dormido com uma rapariga do Sete; e mais:
prometeu um dia ia levar lá o Zito, porque já não estava mais um
miúdo.
— Sukua’!
Te levar p’ra quê então, Zito?
Zito
fez manias de mais-velho e depois, fingindo que era conversa de todos
os dias, disse:
— P’ra
dormir com ela!
Biquinho
desatou a rir.
— Não
pode, Zito. Você ainda é um miúdo, não pode fazer filho!
— Ai!
Só quando pode se fazer filho é que dorme com as mulheres? Poça,
Biquinho, você é burro mesmo!
— É
verdade, Zito! Os homens dormem nas mulheres p’ra fazer os
filhos...
Mas
o menino calou o Zeca Bunéu, miúdo de nove anos não tinha nada que
meter assim na conversa dos mais-velhos...
— O
meu primo disse mesmo já sou homem!
Para
Zeca, miúdo de mais, a história não fez muita impressão; mas
desde essa hora Zito mudou. Ficava calado ou então, seis horas,
afastava e ninguém mais que lhe via. O Xoxombo corria na mulemba mas
o menino não estava lá. Um dia o Biquinho contou que tinha-lhe
perseguido e que o Zito ia lá em cima, no tambarineiro, espreitar as
mulheres que estavam mijar.
— Juro
mesmo! Morra aqui...
— Mas
espreitar p’ra quê? Como ele vai ver com os panos?
Que
o Zito depois abaixava para ficar mirar o buraco molhado no chão e,
um dia mesmo, já escuro, tinha-lhe visto a cheirar.
Esta
conversa de Biquinho era sempre lembrada nestes tempos de agora que o
menino só queria rondar Carmindinha. Olhava com olhos gulosos, ela
passava com o vestido molhado das latas de água, as mamas
pequenininhas a furar. Ou então, seis horas já, o Zito desaparecia,
desculpando que ia na mãe para lhe ajudar.
Mas
ninguém, nem mesmo Biquinho, seu mais velho, podia sentir o que
passava no coração de Zito. O menino sofria desde aquela hora que o
primo falou as conversas da rapariga do Sete. Ficou uns dias não
pensava mais nada, na sua cabeça as falas apareciam desenhadas,
parecia eram figuras do livro de leitura. E Carmindinha, com o
vestido molhado e curto por cima dos joelhos, passando na frente
dele, lembrava sempre aquelas palavras do Chefe lhe convidando a ser
um homem, como ele falava.
Já
tinha contado mesmo no Biquinho: ia acabar as brincadeiras com esses
miúdos do Xoxombo e do Zeca, só queriam quigozas e fisgas, depois
um dia ia lá em cima no Bairro Operário procurar o Chefe para lhe
levar na tal rapariga do Sete.
— E
o dinheiro, Zito?
— Pois
é, Biquinho! Mas vou-lhe arranjar. Nem que vou roubar, não
interessa.
E
assim semanas e semanas não andava pensar outra coisa, não podia
esquivar. Sempre que vestia, tomava banho, sempre que via
Carmindinha, quando deitava para dormir, lá estavam no escuro, a
falar, as palavras do primo Chefe.
O
azar foi mesmo naquela noite de muito calor. Cadavez que pensa — e
todos os dias agora, quando mira Carmindinha, ou sete horas, detrás
das aduelas do quintal de vavó Xica, espreitando Toneta — dói-lhe
no coração, quer chorar e não pode, quer fugir embora para longe,
longe, para não ouvir mais as palavras do primo, não ouvir mais os
barulhos daquela noite quente, depois da chuva, quando as palavras do
Chefe mostraram que o barulho que estava sair no outro lado da cubata
não era as baratas, não era os ratos, como mamã Sessá tinha-lhe
falado, já muito tempo, num dia que adiantou perguntar.
Sempre
que pensa essa noite, Zito tem vontade de fugir, correr para muito
longe; ou ficar e derrubar Carmindinha ou Toneta, que ele nunca viu
mas que adivinha todas as tardes, escondido parecia era ladrão de
galinhas. E nessas horas, jura que vai mesmo arranjar o dinheiro, nem
que roubava, vai no primo Chefe do Bairro Operário, para ser um
homem.
Nesses
dias de chuva, quando a batucada das águas no zinco punha tudo igual
dentro da cabeça e tinha que ficar quieto, as palavras do primo, os
barulhos da cubata, as mulheres paradas de pernas abertas debaixo do
tambarineiro, tudo corria como essa chuva na cabeça do Zito, e o
menino só olhava Carmindinha, espiando se levantava o braço,
mirando se abaixava, espreitando quando trepava na cadeira para
arrumar as coisas. Como nesse dia mesmo...
— Zito,
me dá-me ainda aquele pano!
Na
porta do quarto, sá Domingas apontava o pano dobrado em cima da
mesa. Lá dentro, no chão, a roupa molhada de Carmindinha falou as
palavras do primo, o sangue do Zito começou correr, suas mãos
tremiam na hora de entregar o pano para sá Domingas. Lá fora, os
gritos alegres de Zeca e do Xoxombo davam-lhe vontade de ir mesmo
dar-lhes uma surra.
— Ená,
menino! Parece ’tá doente! Que cara!
Sentado
na esteira, enquanto as mãos espertas de Tunica derrotavam o
Biquinho distraído, Zito espreitou a porta mal fechada, a roupa
molhada no chão e os bocados do corpo da menina, sá Domingas
estava-lhe a limpar: o mataco estreito e rijo de miúda ainda, os
bicos pequenininhos no peito, a pele bem clara, brilhando, e por cima
do barulho da chuva no zinco podia sentir mesmo o vestido seco a
descer em cima do corpo.
Lá
fora a chuva continuava a cair, grossa, branca, quente, sem vento
para lhe enxotar. Nuvens negras nas corridas pelo céu destapavam
bocados de azul que já queriam espreitar, novos trovões e
relâmpagos tremiam as árvores e as cubatas espalhadas pelo areal,
lavadas e roídas das grossas cordas de água descendo das folhas e
dos zincos, juntando-se no chão, escorrendo e formando grandes rios
avermelhados, levando areia e lixo dos musseques caminho da Baixa.
Nga
Sessá, mãe do Zito, insultava a água que começou entrar na
cubata. Se ouvia a voz rouca e ainda bêbada da Albertina, cantava
uma cantiga de asneiras e estava pôr as imbambas em cima da mesa,
para deixar o rio de água suja passar da sala para o quintal.
Descalça e quase nua, Albertina passeava o corpo pesado, deixando a
água da chuva correr, só lhe ajudando com os pés para sair. As
paredes molhadas começaram ficar escuras, a deixar cair bocados de
barro e muita gente já tinha vindo na porta, com a catana ou arco de
barril, para desviar a água que ameaçava entrar. Então na frente
da porta de vavó Xica a água entrava sem respeito, enchendo os
quartos, molhando as esteiras, fazendo aquele barro vermelho nenhuma
vassoura ia-lhe enxotar bem depois de seco. Brincando lá mais em
baixo, onde os pequenos rios juntam numa grande cacimba, e daí vão
em enxurrada, Rua da Pedreira abaixo, Zeca e Xoxombo ouviam os gritos
da mais-velha:
— Aiuê,
minha casa! Acudam! Socorroé!
Velha
já mais de setenta anos, como afirmava capitão Bento, vavó, na
porta, levantava os braços magros, batia as palmas, gritava com a
pouca força que guardava no corpo antigo.
Zeca
Bunéu e Xoxombo chegaram nas corridas e viram logo porquê vavó
estava gritar assim. Xoxombo correu no quintal dele, agarrou o arco
do barril dobrado e gritou no amigo, dando ordem:
— Zeca!
Você adianta fazer um muro de barro, na porta! Com depressa!...
Calada,
mas sempre batendo as mãos, vavó olhava os meninos nus, a chuva a
bater nas costas, as mãos pequenas a levantar o muro de barro tirado
do fundo das águas. Para Zeca e Xoxombo, era uma alegria não vir
mais ninguém para ajudar, brincarem sozinhos sem os mais-velhos para
lhes xingarem, salvando vavó Xica e as coisas da cubata de irem na
chuva. O pequeno muro de barro estava aguentar, parava aquela água
raivosa de espuma vermelha, saía na picada que o Xoxombo, com golpes
rápidos, abria, junto à parede, guiando tudo no caminho da padaria,
mais para baixo, para o rio grande descendo na Ingombota.
Na
hora que sá Domingas apareceu ainda debaixo da chuva com o Zito todo
molhado, já a água não entrava mais na cubata da mais-velha.
Corria, zangada com os meninos, pela picada do Xoxombo. Vaidosos,
olhavam as mulheres e o Zito e se gabavam:
— Pópilas,
Zeca! Você vê só a minha técnica!
— Sukua’!
Se eu não tinha feito o muro, a cubata ia embora na chuva!...
— Ená!
Mas eu é que mando na água. Mira só!
Sá
Domingas ajudava a levantar as coisas do chão, tudo molhado e sujo.
A farinha, nas quindas, parecia era pirão de azeite-palma muito
encarnado, a esteira não queria sair, presa com a lama, e vavó
lamentava:
— Aiuê,
minha vida! Coitada de mim! P’ra quê eu tenho uma neta então?
— Deixa
ainda, vavó, eu ajudo. Mas então a Toneta não foi no serviço?
— Elá!
No serviço? — muxoxou. — Sukuama! Nem que levantou ainda,
fechada na cama!
— Ih?
Então o homem dela?
Vavó
Xica abanou a cabeça, estalando a língua:
— Foi
no Caxito, minha filha. Pronto, aproveitou logo faltar no serviço.
Sá
Domingas conseguiu levantar a esteira e depois de enrolar, chamou:
— Zito!
Pega ainda a esteira, leva no quintal para a chuva lhe lavar.
O
menino, coitado, estava mesmo todo molhado. A camisa branca parecia
tinha remendos, colada no corpo, os calções pingavam nas pernas
grossas mas nem assim tinha aceitado brincar na chuva, chamado no
Zeca e Xoxombo. As orelhas dele só queriam ouvir as conversas de
vavó Xica falando a neta Antonieta. E quando soube ela ainda estava
na cama, Zito sentiu outra vez o sangue nas corridas, aquela vontade
de ir embora e de ficar, pensando nessa hora mesmo a Toneta ia-lhe
chamar. A esteira foi lavada com depressa, o coração a bater, os
olhos na janela aberta no quintal, aquela janela que ele costumava
espreitar pensando ia ver Toneta se despir. Encostou a esteira lavada
no tronco da mandioqueira e veio outra vez na cubata: Toneta estava
de pé, no meio da casa, olhando vavó e sua vizinha sá Domingas,
enxotando a água do chão com a vassoura de mateba.
Vestia
só combinação em cima da pele negra e brilhante, inveja de todas
as mulheres, desejo dos homens no musseque. As pernas abertas se
desenhavam no mexer quase quieto do pano e Zito, parado na porta,
mirava aquele mataco rijo ele costumava espreitar quando, de manhã,
Toneta descia para o serviço, bungulando.
— Sukuama!
Ganho o meu dinheiro, não posso dormir? Quem compra a comida? —
falava a Toneta. — Euh? Quem está pagar a cubata?...
Vavó
Xica não queria lhe responder e sá Domingas sacudia a vassoura de
mateba, com mais raiva. Toneta andou devagarinho em cima da lama
vermelha, os pés faziam um barulho que acordou o Zito e o menino
subiu esse barulho pelas pernas fortes, até onde adivinhava. E as
palavras do primo Chefe gritavam na cabeça, parecia eram desenhos.
Mas não era a rapariga do Sete, ele nem lhe conhecia, era Toneta,
neta de vavó Xica, mulher-perdida na boca de nosso musseque, amigada
com sô Amaral, esse amanuense da Pecuária, magrinho, recurvado,
sempre a tossir.
Aiuê!
Quantas vezes, nessas horas compridas das noites de calor, não
sentiu a raiva dele a crescer dentro do peito e a vontade de fugir
embora, derrubar a porta e dar uma surra nesse branco Amaral, deitado
com a sua tosse na cama da Toneta, de mataco grande e rijo que ele
ficava espiar, tempo parado, debaixo da mulemba de manhã ou queria
ver, nu, à tardinha, quando lhe espreitava? A chuva dos beirais
batucava no zinco, continuava cair em cima dele mas nada que sentia,
não ouvia sá Domingas, arrumando a vassoura, chamando-lhe, zangada:
— Xê,
Zito! Vai embora, menino. Vai na sua mãe, pode ser ela precisa de
você!...
Zito
não podia lhe ouvir, só mirava o corpo da Toneta, desenhado na luz
que estava entrar na porta da frente, vinha com o barulho da chuva e
da brincadeira do Zeca e do Xoxombo, às fimbas na cacimba de água
barrenta. Via as mamas bonitas e pesadas, batucando para baixo e para
cima, quando Toneta virava, raivosa, nas duas mulheres, insultando e
ameaçando. Sá Domingas foi depressa pegar o menino para sair embora
na cubata, não ouvir mais as palavras podres, mas Toneta adiantou:
— Deixa
só o miúdo! Ninguém que vai-lhe comer!
A
mão dela, quente, mão cheia do sono da cama, lhe apalpou nas costas
todas molhadas, com jeito puxou-lhe para dentro da cubata. Sá
Domingas saiu, batendo a porta.
— Sem-vergonha!
A pensar coisas podres com o menino!
Vavó
Xica saiu embora, resmungando, no quintal.
A
chuva tinha passado, nuvens negras no céu só poucas, o azul
espreitava bonito por todo o lado e um sol amarelo fazia força para
romper. Na frente de Toneta, Zito tremia.
— Ai,
coitado! Vejam só como ficou o pobre, assim molhado!
Nessa
hora, que ele tinha esperado tanto tempo, Zito queria falar, queria
dizer aquelas conversas o primo Chefe tinha-lhe ensinado para ser
homem, estava-lhe doer a Toneta falar assim parecia ele era Zeca ou
Xoxombo, mas a garganta não podia, não aceitava.
— Vem
então! Vou-te limpar. Xê, vem! Não me olha assim!...
Toneta
viu os olhos do menino mirando o peito. Na combinação caída as
mamas vivas queriam sair.
— Ih?!
Nunca viste uma mulher? — Toneta riu. — Vem então!
Os
pés não obedeceram, mas as mãos quentes lhe empurravam e quando a
rapariga entrou no quarto, Zito sentiu uma vontade grande de lhe
agarrar, mas não tinha coragem. Quieto, parecia era estátua, deixou
as mãos quentes da Toneta tirar a camisa, o coração batia com
força.
— Aiuê,
coitadinho! Olhem só! Todo molhado, pode ficar mesmo doente!
Mas
Zito não estava ouvir as palavras de Toneta. Sentia só o macio da
voz, seus dentes brancos, o riso dela no escuro da casa. A cama
grande, os lençóis mostravam o fundo no meio onde que cheirava
ainda o quente do corpo da Toneta, desenhando o mataco quieto e
grande, as ancas largas e as compridas pernas rijas. Mas também sô
Amaral estava ali: caneca na mesinha, dois frascos, remédio da sua
tosse, tinha a calça pendurada na cama.
Uma
raiva grande desse velho se mistura no sangue, uma dor forte que
fez-lhe encostar na Toneta, abaixada, a limpar-lhe as pernas. Os
dedos fortes do menino se enterraram na pele macia, nos ombros
redondos de Toneta.
— Elá,
menino! Cuidado, não estraga...
Levantando
os olhos, uns olhos grandes e quietos, Toneta riu os seus dentes
brancos do carvão e as mãos esfregaram no peito do menino, suas
costas, braços, acariciando e rindo, falando no ouvido dele:
— Menino
forte, menino bom! Qual é o teu nome?
— Zito.
José Domingos, quer dizer...
Rindo
sempre, levantou devagar mostrando bem nos olhos do menino suas
quietas mamas negras e fundas, luzindo no meio do cor-de-rosa sem cor
da combinação, perdendo-se no negro fundo da barriga em cima das
coxas.
— Despe
ainda teu calção, para te limpar!
Zito
olhou nos olhos da Toneta, admirado. A voz dela era macia e boa e
quente e tinha gostado quando estava falar menino forte, menino bom.
Mas agora assim de repente, mesmo sorrindo o mesmo sorriso, nua
diante dele, tinha falado parecia era voz de mamã Sessá, quando
estava voltar sujo na brincadeira. Vendo os olhos quietos do menino
envergonhados, Toneta virou séria e, segurando-lhe nos braços,
chegou a cara diante dele:
— Já
sei! Você já é homem, não é, Zito? Não tira só assim os
calções!...
Zito
deu um puxão e Toneta se amachucou no peito dele. Sentiu bem as
mamas macias no seu corpo e o sangue correu zunindo nas orelhas.
— Ih!
Que é isso? Não zanga comigo, Zito! Se eu quero sou boa, se eu
quero sou má!...
As
palavras dela, o riso dela e as palavras do primo Chefe não fugiam,
desenhavam mesmo figuras na cabeça. Zito encostou então os dedos na
cara da Toneta, fez uma força muito grande para falar todas as
palavras o primo lhe tinha ensinado, mas a confusão era muita na
cabeça. Sentia seu sangue quente, via as mamas assim a baloiçar
devagarinho dentro dos seus olhos, a cama lá atrás, a caneca e os
frascos de sô Amaral. Deixou as lágrimas que tinha muito tempo
dentro dele correr pelo peito, pelas mãos até na cara da Toneta, e
só conseguiu dizer:
— Eu
gosto de ti...
E
nem os gritos do Zeca e do Xoxombo, os chamamentos de mamã Sessá na
porta da cubata ouvindo de sá Domingas o descaramento daquela
sem-vergonha da neta da vavó Xica fizeram parar o Zito. A correr
pelos rios de água vermelha, sem camisa, pintando o corpo negro de
pequenas manchas encarnadas, desapareceu lá para cima, para os lados
do tambarineiro, e só duas horas quase, mamã Sessá e Sebastião
Domingos lhe agarraram para a maior surra de ramo de mulemba que o
menino tinha apanhado até naquela hora.
Mas
todos que espreitavam a pancada, para lhe consolar depois, ficaram
admirados na hora que o Zito apareceu e, com seu ar de mais velho
mesmo, sorriu para eles ainda com as lágrimas e só disse:
— Pópilas!
Andava a precisar esta porrada!
José Luandino Vieira, in Nosso Mussuque
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