Seja
por que, o rio ali se opõe largo e feio, ninguém o passava.
Davam-lhe as costas os de cá, do Marrequeiro, ignorando as paragens
dele além, até à dissipação de vista, enfumaçadas. Desta banda
se fazia toda comunicação, relações, comércio: ia-se à vila, ao
arraial, aos povoados perto. João da Areia, o pai, conhecia muita
gente, no meio redor, selava a mula e saía, frequente. O filho,
Lioliandro, de fato se aliviava com essas ausências. Ele não
gostava de se arredar da beira, atava-se ao trabalho. Era o único a
olhar por cima do rio como para um segredado.
Lioliandro
tinha irmãs, careciam de quem em futuro as zelasse. — “Morro,
das preocupações!” — invocava João da Areia, apontando
para os olhos do filho o queimar do cigarro. Morreu. A mãe,
acinzentada, disse então àquele, apontando-lhe aos olhos com o
dedo: — “Tu, toma conta!” — pelo tom, parecia
vingar-se das variadas ofensas da vida.
Lioliandro
cismou: a gente podia vender o chão e ir... E virava-se para a
extensão do rio, longeante, a não adivinhar a outra margem. Mas
constavam-lhe do espírito ainda os propósitos do pai: — “Em
parte nenhuma feito aqui dá tanto arroz e tão bom...” Teve de
reconhecer a exatidão da tristeza.
Suas
irmãs despontavam sacudidas bonitas, umas já com conversado
casamento. Delas se afastava Lioliandro, não por falta de afeto, mas
por não entender em amor as pessoas. Fazia era nadar no rio,
adiantemente, o quanto pudesse, até de noite, nas névoas do
madrugar.
— “Diabo
o daí venha!” — vetava a mãe, que se mexia como uma enorme
formiga. Lioliandro, no fundo, não discordava. Disse: não se
casaria, até que a sorte das irmãs estivesse encaminhada. — “Sua
obrigação...” — a mãe apôs. Lioliandro disso se doeu, mas
considerando tudo certo fatal.
E
veio, nesse tempo, foi uma canoa, sem dono, varada na praia. A fim,
estragada assim, rodara, de alto rio. Ele ocultou-a, levava muito,
sozinho, para a consertar, com mãos de lavrador. Em mente,
achava-lhe um nome: Álvara. Depois, não quis, quando ansioso.
Queria
era, um dia, que fosse, atravessar o rio, como quem abre enfim os
olhos. Tinha notícia — que do lado de lá houvesse lugares: uns
Azéns, o Desatoleiro, a grande Fazenda Permutada. Fez os remos.
Por
esses espaços ninguém metia lanço, devido a que o rio em seio de
sua largura se atalhava de corredeiras — paraíba — repuxando
sobre pedregulho labaredas d’água; só léguas abaixo se
transpunha, à boca de estrada, no Passo-do-Contrato. De lá surgia
pessoa alguma. — “Lá não é mais Minas Gerais...” —
o pai, João da Areia, quando vivo, compunha o jurar.
No
em que se casaram, junto, as duas primeiras irmãs, se deu festa, mas
Lioliandro não sabia dançar. Irrequieta mocinha, também vinda,
dançava sorridente, de entre as mais nem se destacava. Lioliandro
uma hora desertado se sumiu de todos, buscou a beirada do rio, que no
escuro levava água bastante, calado e curto, como o jaguar. Álvara,
aquela recuidada moça, no saudar lhe dera a mão. Disse-se lhe
dissera: — “Você tem o barquinho, pega a gente para passear?”
Ele
a desentendera. Espiava agora o acolá da outra aba, aonde se acendia
uma só firme luz, falavam-na o que não se tinha por aqui, que era
de eletricidade. Disso tomavam todos inveja. Desconfiou mais, para se
arrimar, desse tempo por diante.
Até
o choco das garças, nos ninhos nas árvores. Montou então uma vez a
canoa e experimentou, no remar largo, era domingo, dia de em serviço
não se furtar a Deus. Talvez ele não sendo o de se ver capaz —
conforme sentenciara-o o velho, João da Areia. Decerto, desta banda
de cá, dos conhecidos, o desestimavam, dele faziam pouco.
Do
outro lado, porém, lá, haveria de achar uma moça, e que amistosa o
esperava como o mel que as abelhas criam no mato... O rio era que
indicava o erro da gente, importantes defeitos, a sina. Dentro quase
no meio, se avistava, na seca, ilha-de-capim, antes da maior,
inteira, crôa com mouchão, florestosa.
Depois
foi a Lica, irmã caçula, que ficou nôiva. A não esquecida moça,
Álvara, veio passar mês em casa, para auxiliar nos preparos. Ela
cantava coplas, movendo no puro ar os braços. Mesmo não se curava
Lioliandro de frouxo desassossego.
Entretanto
provara, para sustos e escândalo, a façanha. De aposta, temeram por
sua vida! Desapareceu, detrás das ilhas, e da pararaca, em as
rápidas águas atrapalhadas. Só voltou ao outro dia, forçoso, a
todo o alento.
— “Havia
lá o que?” — perguntaram-lhe. Nenhum nada. Mais a dentro
deviam de viver as povoações, não margeantes, ver que por receio
do ribeiradio, de enfermidades. E fora então buscar a
febre-de-maresia? Tanto que não. Dobrava de melancolia. Trouxera a
lembrança de meia lua e muitas estrelas: várzeas largas... A praia
semeada de vidro moído.
Muito
o coração lhe dava novos recados. Lioliandro estudava a solidão.
Dela lhe veio alguma coisa.
Álvara,
a moça, na festa, para ele atentara, as dadas vezes, com olhos que
aumentavam, mioludos, maciamente; ele desencerrava-se. Da feita,
também ela ficou de parte. — “Não danço...” — a
todos respondia.
Mas
agora os mesmos olhos o estranhassem, a voz, que não ouvindo. Dele
não era que gostava, não podia; decerto, de algum outro, dos que a
enxergavam, diversamente, no giro de alegria. A travessia nem lhe
valera, devia mais ter-se perdido, em fim, aos claros nadas, nunca,
não voltando.
Na
manhã, ele olhou menos as mãos, abertas rudemente: o rio, rebojado,
mudava de pele. Nem atendeu aos que lhe falavam, aflitos, à mãe,
que desobedecida o amaldiçoava. Entrou, enfiava o rio de frecha,
cortada a correnteza, de adeus e adiante, nadava, conteúdo,
renadava.
Revia
as ilhas, donde o encachoeirado estrondeante, daí o remate e praia —
de a-porto. Seu amor, lá, pois. Mediante o que precisava, que de
impor-se afã, nem folga, o dever de esforço. — “Não posso é
com o tal deste rio!” — tanto tinha dito o pai, João da
Areia. Sacudiu dos dois lados os cabelos e somente riu, escorrido
cuspindo.
Súbito
então se voltou, à voz a chamar seu nome: por entre o torto ondear,
que ruge-ruge mau moinhava enrolando-o, virou e veio.
A
mãe bem que chorava, desdizendo as próprias antigas pragas. Detrás
dela, aparecia aquela escolhida, Álvara, moça, que por ele gritara,
corada ou pálida. — “Que é que lá tu queria?!” — as
mãos da mãe tacteavam-lhe o corpo.
Mais
a moça o encarou. — “Tudo é o mesmo como aqui...”
Lioliandro quis ouvir, se bem que leve, nem crendo.
— “De
lá vim, lá nasci” — sem pejo, corajosa, a curso. Sim, a
gente a podia fácil entender, tão querida, completadamente: —
“Sou também da outra banda...”
Guimarães Rosa, in Tutameia
Nenhum comentário:
Postar um comentário