Bom
dia, aeromoça! Não sei se devia dizer-lhe, antes: Bom céu! O dia é
de todos, e desejá-lo bom não passa de cumprimento. Já o céu é
de vocês, de seus amigos aeronautas, e dos pássaros, em condomínio.
Dos passageiros o céu não é, que os passageiros levam para o alto
seus cuidados terrestres, seu comportamento terrestre, seu terrestre
apego a uma existência rastejante. Ah que la vie est
quotidienne!, lamentava-se o poeta Jules Laforgue. Ela jamais é
cotidiana para vocês, salvo na medida em que, abdicando
temporariamente a condição alada, passam de aeromoças a moças,
simplesmente. Sei de uma que está fazendo serviço de escritório,
proibida de voar por motivo de saúde, e me pergunto que podem
significar para ela esses papéis, esses telefonemas, esses recados
que circulam num plano de cimento invariável, enquanto, sobre a
plataforma de nuvens, suas irmãs caminham, ao mesmo tempo singelas e
majestáticas. Não, não vou confrontar essa rapariga com o
passarinho na gaiola ou o peixe no aquário. O diretor do jornal
espera de seus redatores que escrevam coisas originais, ou que, em
circunstâncias extremas, dissimulem a falta de originalidade com um
filete de imaginação. Aeromoça na burocracia me dá ideia de um pé
de gerânio intimado a viver e florir dentro de um armário fechado;
de uma formiga dentro da garrafa; de um marinheiro que vi doente num
sanatório, com a mão em pala sobre os olhos, olhando sempre o vale
lá embaixo, à espera de que um navio atracasse entre as árvores;
este ainda levava o navio consigo, mas o avião está acima do nosso
poder de fixá-lo, e foge por hábito; onde quer que andasse, o
marinheiro estaria mais ou menos ao nível do seu barco, porém a
moça plantada no escritório sabe que a correlação se perdeu, e o
zumbido dos motores, que às vezes nos acorda pela madrugada (depois
dormimos, sentindo-nos ancorados à terra do colchão), há de ser
para ela um adeus enervante e rouco. Saúde, aeromoça exilada entre
fichários: é o que lhe desejo sem nenhum convencionalismo de boa
educação, mas porque o justo é voltar às nuvens o que às nuvens
pertence.
Estou
escrevendo essas bobagens meio líricas no pressuposto de que vocês,
amigas, adoram viajar e detestam isso aqui embaixo. Bem sei,
entretanto, que não se libertaram de todo da contingência, e querem
amar ao nível da terra, e ter filhos que olhem de baixo para os
aviões. Que vocês têm medo como a gente, há pouco um filme o
contava em cinemascope, seja porque não se aperfeiçoou ainda uma
nova geração de aeromoças mais do ar que do sangue, ou de sangue
supercontrolado, seja porque o medo, como a fome, o instinto amoroso
e o sentimento da beleza, constitui prendas inalienáveis da
humanidade, e com elas temos de edificar nossa vida, e mesmo nossa
coragem. Mas, por outro lado, aeromoça, deixe que eu saúde em sua
figurinha o mais belo mito moderno, aquele que as empresas de
navegação aérea criaram num instante inspirado de poesia
comercial, aquele que acompanha os homens em sua paúra e os impede
de se rebaixarem à situação de macacos em pânico; aparição que
os cerca de cuidados quase maternos à força de sutileza, ao mesmo
tempo impessoais na sua cortesia planificada; companhia com que
sonhamos os mais soberbos e aventurosos romances mentais, no momento
em que precisamos urgentemente de uma cota de romance; enfim, peça
insubstituível do avião e da ideia de viagem aérea, que torna, com
sua ausência, tão cacetes os voos onde só há comissários de
bordo; peça, que digo? alma do avião, e seu quinto motor inefável
e humanizante.
Bom
céu, aeromoça. O céu não tem estado bom nesses últimos dias, e
se isso explica o atraso dos aviões, pode explicar também o atraso
com que festejo o seu dia 31 de maio. Chove, e há gripe por todos os
lados. Não houve propriamente maio, e sim um composto de águas
barrentas, tosse, febre e candidaturas. Que o céu clareie e possamos
festejar melhor a sua data. E como, afinal de contas, esta é uma
página séria, terminarei desejando que lhe deem, no espaço, cada
vez maior segurança de voo; e, na terra inflacionada, melhor
salário. Você bem o merece, aeromito, aeromusa.
Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira
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