quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Os números da felicidade

A felicidade só existe naquele minuto trinta e sete em que o Dorflex faz efeito e a nuca deixa de ser o pufe para os pés de um demônio gordo.
Só existe no décimo quarto dia do Efexor, quando os dedos dos pés se tornam fios desencapados e você sabe que só lhe resta dançar. Uma minhoca cósmica efervescente seduz todos os seus órgãos e termina em raios purpurinados nas pontas duplas do cabelo e você precisa dançar. Dançar como numa tribo, dançar como se suas ancas fossem escravas felizes açoitadas por uma música invisível, dançar como se o planeta estivesse há um século sem chuva e só você pudesse enfeitiçá-lo. Aonde foi fulano? Dançar no banheiro da firma, escondido. Você precisa dançar. Suas pernas não servem para mais nada a não ser isso: você sozinha deslizando a meia pelo piso da cozinha. Sim, você ficará gorda, e ficará anorgásmica, e ficará olhando estática uma amiga te contar: “morreram num acidente”, enquanto pensa: “tá, mas preciso comer, cadê o risoto à carbonara que pedi?”, e ficará cínica ao ver qualquer filme em que, “mesmo se amando, eles não conseguiram”. Mas você vai querer dançar.
Só existe no minuto dezessete do Rivotril sublingual 0,25 mg. Quando o dedo empurrando suas amígdalas, “engula-se, seu puto”, prefere desencanar e apontar para as estrelas. O mundo cheirando a uma chuva fina que caiu sobre uma horta de manjericão fresco, todas as quinas do mundo com “protetor fofinho pra criança não se machucar”. Se você meter logo dois sublinguais, o que, vamos combinar, dá apenas meio remédio, é como se Jesus (não esse, mas aquele numa versão mais legal) e a sua mãe (não essa, mas aquela numa versão mais legal) celebrassem um ao outro, numa facção de proteção e bondade extremas, para te rodopiar docemente numa valsa celeste.
Só existe de verdade quando bate o tucundundum do “tô nem aí, mundão”, mas para isso é preciso misturar Dorflex com Efexor com Rivotril e… com um Dramin. Não aconselho, pois pode dar misto de demência e labirintite e pressão baixa — o que meu psiquiatra chamou de “cê tá louca, idiota, podia ter morrido, imbecil”.
Não acredito em nenhuma droga feita por “marcas” como Duda Maluco, Noinha, Zé do Branco e Piolho do Pavilhão. As boas drogas têm SAC.

Tati Bernardi, in Depois a louca sou eu

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