quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Ao nascer do dia

Os planetas do sistema solar, explica G. P. Kuiper, começaram a solidificar-se nas trevas pela condensação de uma fluida e informe nebulosa. Tudo era gelado e escuro. Mais tarde o Sol começou a concentrar-se até que se reduziu quase às suas dimensões atuais, e nesse esforço a temperatura subiu, elevou-se a milhares de graus e se pôs a emitir radiações no espaço.

Uma escuridão danada, aquela, confirmou o velho Qfwfq, eu era ainda criança, mal me lembro. Lá estávamos, como de costume, com papai e mamãe, vovó Bb’b, uns tios que nos visitavam, o sr. Hnw, aquele que depois virou cavalo, e nós, os pequenos. Sobre a nebulosa, creio que já contei várias vezes, nos sentíamos como que deitados, estirados, parados, deixando-nos levar por onde elas se moviam. Não que ficássemos na parte externa, compreende?, na superfície da nébula; não, ali fazia muito frio; ficávamos embaixo, como que protegidos por uma matéria fluida e granulosa. Não tínhamos como calcular o tempo; todas as vezes que me punha a contar as voltas da nebulosa surgiam contestações, dado que no escuro não dispúnhamos de pontos de referência; e acabávamos brigando. Assim preferíamos deixar os séculos correrem como se fossem minutos; não nos restava senão esperar, mantermo-nos cobertos o maior tempo que pudéssemos, cochilar, trocar umas palavras de vez em quando para estarmos certos de que continuávamos ali; e — naturalmente — coçar-nos; porque, a bem dizer, todo aquele turbilhonar de partículas só fazia nos provocar um fastidioso prurido.
O que esperávamos, ninguém saberia dizê-lo; certo, vovó Bb’b se lembrava ainda de quando a matéria era uniformemente dispersa pelo espaço, e do calor e da luz; apesar de todos os exageros que sempre existem nas histórias dos antigos, os tempos deviam ser de certa forma melhores, ou pelo menos diversos; e para nós tratava-se de deixar passar aquela noite imensurável.
Em melhor situação que todos nós estava minha irmã G’d(w)n por seu caráter introvertido: era uma jovem esquiva, e gostava do escuro. G’d(w)n escolhia, para ficar, lugares um pouco afastados, na orla da nuvem; ela contemplava a escuridão, deixava escorrer em finas cascatas os grânulos de fina poeira, falava consigo mesma, com risinhos que eram como pequenas cascatas de fina poeira, cantarolava e se entregava — adormecida ou desperta — aos sonhos. Não eram sonhos como os nossos — na escuridão, sonhávamos com outra escuridão, pois era só isso que nos vinha à mente; ela sonhava — pelo que podíamos depreender de seu variar — com uma escuridão cem vezes mais profunda e vária e aveludada.
Foi meu pai o primeiro a perceber que alguma coisa estava se modificando. Eu estava cochilando e seu grito despertou-me:
Atenção! Algo está nos tocando!
Embaixo de nós a matéria da nebulosa, fluida como sempre havia sido, começava a condensar-se.
Na verdade, minha mãe já havia algumas horas começara a virar-se e a revirar-se, dizendo:
Ufa, não sei de que lado ficar deitada!
Em suma, se a tivéssemos compreendido, ela nos advertia assim de que uma alteração qualquer ocorria no local onde estava estendida: a fina poeira não era a mesma de antes, macia, elástica, uniforme, tanto que nela podíamos rolar à vontade sem deixar traços, mas agora começava a formar-se uma espécie de abaixamento ou depressão, principalmente no local em que ela costumava apoiar-se com todo o peso. E parecia-lhe sentir embaixo de si como que uma concentração de grânulos, um espessamento, umas bossas; que talvez estivessem sepultos a centenas de quilômetros abaixo, mas que se faziam sentir através de todas aquelas camadas de poeira finíssima. Não que de hábito déssemos muita trela àquelas premonições de minha mãe: pobrezinha, hipersensível como era e já bastante avançada em anos, a posição em que se encontrava não era das mais indicadas para os nervos.
Depois foi meu irmão Rwzfs, naquela época pequenino, a quem, num certo momento, vendo-o, como direi?, esbatendo-se, cavando, em suma, agitando-se, perguntei:
Que está fazendo?
E ele respondeu:
Brincando.
Brincando? Com quê?
Com alguma coisa — disse ele.
Compreendem? Era a primeira vez. Nunca tinha havido coisas com as quais pudéssemos brincar. E como queriam que brincássemos? Com aquela papa de matéria gasosa? Grande brincadeira — só poderia ocorrer à minha irmã G’d(w)n. Se Rwzfs brincava, era sinal de que havia encontrado algo de novo, tanto que logo em seguida disse, com um de seus costumeiros exageros, que havia encontrado uma pedra. Certamente não era uma pedra, e sim um conglomerado de matéria mais sólida, ou — digamos — menos gasosa. Sobre esse ponto nunca se mostrou muito preciso, mas ficou a contar histórias, do modo como lhe vinham, e quando chegou a época em que se formou o níquel, e não se falava de outra coisa, ele disse:
Isto mesmo: era níquel aquilo com que eu estava brincando! — O que lhe valeu o apelido de “Rwzfs de níquel”.
(Não como dizem agora alguns que o chamávamos assim porque ficara sendo de níquel, não conseguindo, lerdo como era, avançar além do estágio mineral; as coisas se passaram diversamente, digo isso por amor à verdade, não porque se trate de meu irmão: ele sempre foi um tanto lerdo, não nego, mas não do tipo metálico, muito menos ainda do tipo coloidal; tanto que, muito jovem ainda, casou-se com uma alga, uma das primeiras, e não soubemos mais nada a seu respeito.)
Enfim, parece que todos haviam sentido alguma coisa; exceto eu. Talvez porque seja distraído. Senti — não me recordo se dormindo ou já desperto — a exclamação de nosso pai: “Algo está nos tocando!”, uma expressão sem significado (dado que antes disso nada havia tocado em nada, podemos estar certos) mas que adquiriu um significado no instante exato em que foi dita, ou seja, significou a sensação que começávamos a experimentar, levemente nauseante, como uma lâmina de lodo que passasse por baixo de nós, plana, e sobre a qual parecêssemos quicar. E eu disse, como em tom de censura:
Ah, vovó!
Perguntei-me reiteradas vezes em seguida por que motivo minha primeira reação foi a de recriminar nossa avó. Vovó Bb’b, por ter se mantido fiel aos seus hábitos dos tempos antigos, não raro fazia coisas fora de propósito: continuava a acreditar que a matéria estava em expansão uniforme e, por exemplo, que bastava deixar a imundície ali de qualquer maneira que ela iria rarefazer-se e desaparecer ao longe. Não lhe entrava na cabeça que o processo de condensação já tinha começado havia algum tempo, ou seja, que a sujeira se espessava sobre as partículas de tal forma que não se conseguia mais retirá-la dali. Foi assim que, inconscientemente, associei aquele fato novo do “algo está nos tocando!” com alguma coisa de errado que pudesse ter feito minha avó e por isso lancei aquela exclamação.
E então, vovó Bb’b:
Que foi? Achou a rosca?
Essa rosca era um pequeno elipsóide de matéria galáctica que vovó havia desenfurnado quem sabe de onde nos primeiros cataclismos do universo e trazia sempre embaixo dela, para sentar-se em cima. A certo ponto, na grande noite, perdera-a, e minha avó me culpava dizendo que eu a havia escondido. Ora, é verdade que sempre odiara aquela rosca, tanto parecia absurda e deslocada em nossa nebulosa, mas, no máximo, poderiam reprovar-me apenas de não vigiá-la o tempo todo, como pretendia vovó.
Até meu pai, que sempre era muito respeitoso com ela, não pôde se conter de um dia observar-lhe:
Escute aqui, mamãe, alguma coisa séria está para acontecer, e a senhora continua com essa história da rosca!
Ah, bem que eu dizia que não estava conseguindo dormir! — disse minha mãe; também esta uma observação pouco apropriada às circunstâncias.
Nisso ouvimos um forte: “Puac! Uac! Sgrr!”, e percebemos que algo estava ocorrendo ao sr. Hnw: ele cuspia e arrotava sem parar.
Senhor Hnw! Senhor Hnw! Contenha-se! Onde irá acabar assim? — começou a dizer meu pai, e, naquelas trevas ainda sem clarabóia, conseguimos às apalpadelas segurá-lo e erguê-lo à superfície da nebulosa, para que tomasse fôlego.
Estendemo-lo sobre aquele estrato externo que ainda estava adquirindo uma consistência escamosa e escorregadia.
Uac! Te fecha em cima, esse troço! — procurava dizer o sr. Hnw, que, quanto à capacidade de exprimir-se, nunca fora dos mais bem-dotados. — A gente afunda, afunda, e engole! Scrach! — cuspia.
A novidade era esta: quem não estivesse atento à nebulosa afundava. Minha mãe, com o instinto das mães, foi a primeira a percebê-lo. E gritou:
Os meninos, estão todos aí? Onde é que estão?
Na verdade estávamos um tanto distraídos e, embora antes, quando tudo girava regularmente pelos séculos, nos preocupássemos sempre em não nos dispersar, agora essa preocupação havia passado.
Calma, calma. Que ninguém se afaste — disse meu pai. — G’d(w)n! Onde você está? E os gêmeos? Quem foi que viu os gêmeos?
Ninguém respondeu.
Ai! ai! Eles se perderam! — gritou nossa mãe.
Meus irmãozinhos ainda não estavam em idade de saber comunicar qualquer mensagem, por isso se perdiam facilmente e viviam sempre vigiados.
Vou procurá-los! — gritei.
Isso, muito bem, Qfwfq! — disseram papai e mamãe, e logo, arrependidos: — Mas não se afaste, senão você também se perde! Não saia de perto! Bom, vá, mas indique onde se encontra: assovie!
Comecei a caminhar no escuro, no pântano daquela condensação de nébula, emitindo um silvo contínuo. Digo: caminhar, quer dizer, uma forma de mover-se na superfície, o que era inconcebível até poucos minutos antes, e que agora era tudo o que se podia tentar, porque a matéria opunha tão pouca resistência que, não se estando atento, em vez de continuar avançando na superfície, arriscava-se a afundar obliquamente, ou mesmo na perpendicular, e lá ficar sepulto. Mas fosse qual fosse a direção em que andasse, ou o nível, as probabilidades de encontrar meus irmãozinhos eram iguais, quem sabe onde haviam se escondido os dois traquinas.
De repente tombei; como se me tivessem dado — como diríamos hoje — uma rasteira. Era a primeira vez que caía, não sabia nem mesmo o que era isso de “cair”, mas estávamos ainda no macio e nada me aconteceu.
Não pise aqui — disse uma voz —, Qfwfq, que não quero. — Era a voz de minha irmã G’d(w)n.
Por quê? Que tem aqui?
Fiz umas coisas com as coisas… — disse.
Levei algum tempo para perceber, às apalpadelas, que minha irmã, triturando aquela espécie de lama, havia produzido um montinho cheio de pináculos, de serrilhas e de agulhas.
Mas que andou fazendo?
G’d(w)n dava sempre respostas sem pé nem cabeça.
Um fora com um dentro dentro. Tzlll, tzlll, tzlll…
Continuei meu caminho entre um trambolhão e outro. Tropecei também no indefectível sr. Hnw, que havia retornado finalmente à matéria em condensação, de cabeça para baixo.
Levante-se, senhor Hnw, senhor Hnw! Impossível que não consiga ficar de pé! — E coube-me ajudá-lo novamente a sair daquela, desta vez com um empurrão de baixo para cima, porquanto também eu estava completamente imerso.
O sr. Hnw, tossindo, ofegando e espirrando (fazia um frio mais gelado do que nunca),aflorou à superfície exatamente no lugar onde estava sentada vovó Bb’b. Esta voou no ar, e logo se emocionou:
Os netinhos! Os netinhos voltaram!
Não, mamãe, veja, é o senhor Hnw! — Não se entendia mais nada.
E os netinhos?
Estão aqui! — gritei —, e também achei a rosca!
Os gêmeos deviam ter feito há muito um esconderijo secreto no interior da nébula e foram eles que esconderam a rosca lá dentro, para brincar. Enquanto a matéria esteve fluida, flutuando em meio a ela podiam mesmo dar saltos mortais através da rosca, mas agora achavam-se prisioneiros de uma espécie de creme espumante: o buraco da rosca estava tapado, e eles próprios se sentiam comprimidos por todos os lados.
Agarrem-se à rosca! — tentei fazê-los compreender —, que eu arranco vocês daí, seus tolos!
Puxei, puxei e em um certo ponto, antes que se dessem conta disso, já estavam dando cambalhotas na superfície, que agora se encontrava recoberta por uma película encrostada como clara de ovo. A rosca, ao contrário, mal emergira, havia se desfeito. Sabe-se lá que raios de fenômenos ocorriam então; e tente-se explicá-los à vovó Bb’b.
Agora mesmo, como se não tivessem conseguido escolher um momento mais propício, os tios se levantaram lentamente e disseram:
Bom, está ficando tarde, nossos filhos, sabe-se lá o que estão fazendo, estamos um tanto preocupados, foi um prazer tê-los encontrado de novo, mas é melhor irmos andando.
Não se pode dizer que não tivessem razão, teria sido até mesmo o caso de terem se alarmado e saído correndo antes; mas aqueles tios, talvez pelo local contramão em que moravam, eram tipos um tanto embaraçados. Talvez estivessem se roendo por dentro até agora e não haviam ousado dizê-lo.
Meu pai falou:
Se querem ir, não vou prendê-los mais; porém, reflitam bem se não é mais conveniente esperar que a situação se esclareça, pois como está não se sabe que tipo de perigo se vai enfrentar. — Enfim, esse tipo de discurso cheio de bom senso.
Mas eles:
Não, não, muito obrigado pela atenção, foi uma bela conversa, mas já lhes causamos muito transtorno — e outras basbaquices. Em suma, não que compreendêssemos muito, mas eles não se davam mesmo conta de nada.
Esses tios eram três, para ser preciso: uma tia e dois tios, todos os três muito compridos e praticamente idênticos; nunca se soube bem, entre eles, quem era marido ou irmão de quem, nem mesmo quais eram exatamente as relações de parentesco conosco; naqueles tempos muitas eram as coisas que permaneciam vagas.
Começaram a partir um de cada vez, os tios, cada qual numa direção distinta, rumando para o negro céu, e vez por outra, como para manter o contato entre si, faziam: “Oh! Oh!”. Faziam tudo dessa maneira; não eram capazes de agir com um mínimo de método.
Mal haviam partido os três e já se ouviam seus “Oh! Oh!” que vinham de pontos longínquos, embora devessem estar ainda ali a poucos passos. E ouvíamos até mesmo algumas de suas exclamações, embora não soubéssemos o que queriam dizer: “Mas aqui é o vácuo?”; “Por aqui não se passa!”; “E por que não vem por aqui?”; “E onde você está?”; “Pule, então!”; “Ora, pular o quê?”; “Mas daqui temos que voltar!”. Em suma, não se entendia nada, a não ser que entre nós e aqueles tios estavam se alargando enormes distâncias.
Foi a tia, que partira por último, a vociferar um discurso mais coerente:
E agora estou em cima de um pedaço dessa coisa que se destacou…
E as vozes dos dois tios, apagadas agora pela distância, que repetiam:
Idiota… Idiota… Idiota…
Estávamos escrutando aquela escuridão atravessada de vozes, quando ocorreu a mudança: a única verdadeiramente grande mudança que me foi dado presenciar, diante da qual o resto nada significa. Em suma: aquela coisa que começou no horizonte, aquela vibração que não se assemelhava ao que agora chamávamos de som, nem nada do gênero “algo está nos tocando!”, ou outros mais; uma espécie de ebulição certamente distante e que ao mesmo tempo nos parecia próxima; enfim, de repente a escuridão se fez escura em contraste com algo que não era escuro, ou seja, a luz. Assim que pudemos fazer uma análise mais atenta de como estavam as coisas, percebemos que: primeiro, o céu estava escuro como sempre mas começando a não ser bem assim; segundo, a superfície sobre a qual nos encontrávamos, toda enrugada e cheia de crostas, feita de um gelo sujo de dar náuseas, estava se dissolvendo rápido porque a temperatura aumentava a todo vapor; e, terceiro, aquilo que depois iríamos chamar de fonte de luz, ou seja, uma massa que estava se tornando incandescente, separada de nós por um enorme espaço vazio, parecia começar a experimentar todas as cores, uma por uma, com sobressaltos cambiantes. E mais ainda: lá no meio do céu, entre nós e a massa incandescente, um par de ilhotas iluminadas e vagas, que revolviam no vácuo tendo em cima os nossos tios ou outras pessoas reduzidas a sombras longínquas que emitiam uma espécie de ganido.
O mais difícil fora feito: o núcleo da nébula, contraindo-se, havia gerado calor e luz, e agora havia o Sol. Tudo o mais continuava a girar ali em torno dividido e aglomerado em vários pedaços, Mercúrio, Vênus, a Terra, e outros mais além, e todos os que lá estavam. E, acima de tudo, fazia um calor de matar.
Nós, ali de boca aberta, empertigados, salvo o sr. Hnw, que continuava de cabeça baixa, por prudência. E minha avó, lá embaixo, a rir. Já disse: vovó Bb’b era dos tempos da luminosidade difusa, e durante toda a era da escuridão havia continuado a falar como se de um momento para o outro as coisas devessem voltar ao que eram antes. Então pareceu-lhe chegado o momento; a princípio, quis bancar a indiferente, a pessoa para quem tudo o que ocorre é perfeitamente natural; depois, como não lhe déssemos a devida atenção, começou a rir, e apostrofar-nos:
Seus ignorantes… Ignorantões…
Não o fazia, contudo, inteiramente de boa-fé; a menos que sua memória então não a ajudasse tão bem. Meu pai, ainda que pouco entendesse do que estava se passando, disse-lhe, sempre com cautela:
Mamãe, sei o que quer dizer, mas agora, vamos lá,parece que se trata de um fenômeno inteiramente diverso…— E apontando para o solo: — Olhe lá embaixo! — exclamou.
Baixamos os olhos. A Terra que nos sustinha era ainda um montão gelatinoso, diáfano, que se tornava cada vez mais sólido e opaco, a começar pelo centro onde estava se adensando uma espécie de gema de ovo; mas nossa vista ainda conseguia atravessá-la de um lado a outro, iluminada que estava por aquele primeiro Sol. E em meio àquela espécie de bola transparente víamos uma sombra que se movia como se estivesse nadando ou voando. E nossa mãe disse:
Minha filha!
Todos reconhecemos G’d(w)n: apavorada talvez pelo incêndio do Sol, num ímpeto de sua alma esquiva, havia se aprofundado na matéria da Terra em condensação, e agora procurava abrir uma passagem nas profundezas do planeta, e parecia uma borboleta de ouro e de prata, cada vez que passava por uma zona ainda iluminada e diáfana, ou então desaparecia na esfera de sombra que se alargava cada vez mais.
G’d(w)n! G’d(w)n! — gritávamos, e nos atirávamos ao chão procurando também nós abrir uma via para chegar até ela.
Mas a superfície terrestre se coagulava cada vez mais num invólucro poroso, e meu irmão Rwzfs, que conseguira enfiar a cabeça numa greta, por pouco não acabou estrangulado.
Depois, não a vimos mais: a zona sólida ocupava agora toda a parte central do planeta. Minha irmã ficara do lado de lá e não se soube mais dela, se permanecera sepulta nas profundidades ou se conseguira salvar-se do outro lado, até que um dia, muito mais tarde, fui encontrá-la em Camberra, em 1912,casada com um certo Sullivan, ferroviário aposentado, tão mudada que quase não a reconheci.
Levantamo-nos. O sr. Hnw e vovó estavam à nossa frente, chorando, envoltos em chamas douradas e azuis.
Rwzfs! Por que pôs fogo em sua avó? — começou a gritar nosso pai, mas, voltando-se para meu irmão, viu que também ele estava envolto em chamas.
E meu pai também, e minha mãe, e eu próprio, todos nós ardíamos no fogo. Ou melhor: não ardíamos, estávamos como que imersos numa floresta deslumbrante, as altas chamas se erguendo acima da superfície do planeta, numa atmosfera de fogo na qual podíamos correr e planar e voar, tanto que nos sentimos invadidos por uma nova alegria.
As radiações do Sol estavam queimando os invólucros dos planetas, feitos de hélio e hidrogênio; no céu, lá onde estavam nossos tios, volteavam globos incandescidos que arrastavam atrás de si longas barbas de ouro e de turquesa, como um cometa faz com sua cauda.
A escuridão retornou. Acreditamos que tudo o que poderia ocorrer já havia ocorrido, e:
Agora sim é que é o fim — disse vovó —, é preciso dar crédito aos velhos.
Mas, em vez disso, a Terra tinha apenas dado uma de suas voltas habituais. Era a noite. Tudo estava apenas começando.

Italo Calvino, in Todas as Cosmicômicas

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