Tenho
sido injusto para com a Noite. Amo a Noite e vivo a difamá-la,
chegando mesmo ao crime de tomar narcótico para combater a insônia
— esse meu único bem. A Noite é a túnica que me assenta como uma
luva, como o sudário a um cadáver, ou — já que estou mesmo no
terreno das comparações — como óculos escuros num cego de
nascença, em pleno meio-dia.
Só
não amo, na Noite, as baratas e os escorpiões, estes felizmente
mais raros de encontrar do que os fantasmas ou os assassinos
embuçados nas esquinas sem luz, a desoras. As baratas, temo-as como
aos seres fantásticos criados pela imaginação de Jerônimo Bosch,
e preferiria ter que entrar na jaula dos leões a ter por um instante
na mão um desses habitantes dos esgotos e das sarjetas, de antenas
vibráteis e patas de caranguejo. Vou mesmo ao extremo de preferir
uma sopa de escorpiões vivos ao simples contato de uma barata morta
e já em parte devorada pelas formigas, de patas para o ar como uma
prostituta. O meu inferno será por certo todo coalhado de baratas
aos milhares e aos milhões, todas vivas e ágeis dentro das trevas
eternas e úmidas — a menos que falte ao meu punidor imaginação
necessária para punir-me até a loucura, ou não tenha ele maldade
bastante para impor um tal castigo à minha humana inocência.
Mas
a Noite, excluídas as baratas e a ameaça dos escorpiões, é a
minha musa e o meu túmulo bem-amado, aquele a que aspiro com todas
as forças da minha alma, como deve aspirar ao seu todo ser lúcido e
tocado de inviolável pureza. E aqui lhe rendo esta homenagem tardia
mas veemente, no pleno silêncio deste quarto frio e povoado de
trevas, tendo por quadro-negro esta parede onde a custo faço
deslizar a ponta do meu lápis, já que a lua hoje não veio da Ásia
e não consigo sequer enxergar o meu triste corpo ajoelhado na cama.
....A/OA7
dormit diabolus.
Walter Campos de Carvalho, in A Lua Vem da Ásia
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