quarta-feira, 2 de novembro de 2022

A Lua Vem da Ásia | Cap. 71

Quando em 1934 atravessei sozinho o deserto de Iguidi, tendo por única companhia um casal de borboletas, ocorreu-me a aventura mais surpreendente que pode acontecer a um homem vivo ou morto, e que procurarei resumir em três linhas. Foi o caso que um dia despertei transformado em mulher e, nessa qualidade, fui pouco depois recrutado para o harém do sultão do Marrocos, onde servi como pude durante um ano e quatorze dias. (Minha experiência nesse setor só deve interessar a mim mesmo, e manda o recato que eu me abstenha de entrar em maiores detalhes sobre o assunto, a menos que a isso me obrigue a minha consciência na hora derradeira).
Livre do impetuoso sultão, por haver recuperado com a ajuda de um famoso cirurgião de Casablanca meus atributos mais masculinos, consegui transpor a nado o estreito de Gibraltar, que não me pareceu tão estreito quanto dizem, e fui dar com o nariz na pequena cidade de Tarifa, onde uns pescadores me recolheram e por pouco não me enterraram como morto, dado o meu extremo estado de fraqueza. Ressuscitado graças aos cuidados e carinhos da bela filha de um dos meus salvadores, que se apaixonou por mim à primeira vista, quinze dias depois já lhe arranjava um filho ou pelo menos me esforçava bastante para isso, do que resultou ter eu que fugir às pressas para o porto de Cádiz, num barco roubado ao pai e que vendi pela bagatela de seiscentas pesetas. Em Cádiz engordei três quilos e fui apresentado a um áulico do rei Afonso XIII que era pederasta passivo e que me obteve todas as facilidades para chegar até a fronteira de Portugal, que transpus disfarçado em espantalho numa noite de fortíssimo temporal.
Em Portugal vivi de 1935 a 1939 — primeiro em Évora, depois em Leiria e, por último, finalmente, em Coimbra, onde fiz de novo o primeiro ano de Direito e fui preso como traficante de cocaína e de escravas brancas, embora o meu ramo verdadeiro fossem a morfina e o lenocínio puro e simples, como fartamente pude provar em juízo. Deportado arbitrariamente pelos beleguins do Sr. Salazar, acabei indo dar com os costados nas terras do Ceará, ao norte do Brasil, onde funcionei como sacristão durante onze meses e fundei, nas horas vagas, o Partido Anarquista Nacional, que por excesso de anarquia de alguns membros teve duração efêmera. Amasiado com a viúva de um fabricante de velocípedes, que dispunha de algum recurso e me amava perdidamente, acabei um dia embarcando com ela para a capital do país, que era Rio de Janeiro e não Buenos Aires como eu pensava, e onde fomos imediatamente presos por causa de um pacote de maconha que eu trazia preso às cuecas e do qual não tinha o menor conhecimento a viúva. Solto à custa de todo o dinheiro que trazia e após haver inculpado seriamente a viúva no caso (consta que ela ainda está presa até hoje) instalei-me no bairro de Copacabana com uma roleta viciada que consegui roubar de um parque de diversões, e em pouco tempo era um dos homens mais ricos da cidade, com três automóveis e um iate anfíbio. Eleito senador da República, exerci o mandato apenas por uns poucos meses, pois numa das muitas revoluções que frequentemente assolam o país fui despojado de todos os meus haveres e ainda obrigado a procurar asilo na vizinha república do Uruguai, como exilado político e herói interamericano. No Uruguai tive de aprender o uruguaio, que é uma língua extremamente parecida com o espanhol e que me foi de grande proveito para o futuro, pois ainda é a mesma língua que se fala na República Argentina, aonde fui ter em princípios de 1943. Em Buenos Aires, onde estive apenas duas horas devido ao perfeito serviço de policiamento local, fui fichado como anarquista, comunista, trotsquista e terrorista, além de traficante de tóxicos e explorador do lenocínio, tendo sido posto a ferros num navio cargueiro que estava de saída do porto e que me levou, em menos de uma semana, até a Terra do Fogo. Ali, batendo o queixo de frio, fui entregue à minha própria sorte, com a ordem terminante de abandonar o país (pois ainda era a Argentina) dentro de vinte e quatro horas, fosse a nado ou de helicóptero ou por qualquer outro meio que julgasse mais rápido e aconselhável. Com a larga experiência de natação que me dera meu passado político, atirei-me ao mar assim que pude e nadei, em estilo crawl, até uma das ilhas Malvinas, que pertencem ao domínio britânico e onde fui recebido com as honras de atleta. Em Port-Stanley, onde permaneci durante todo um ano, fui sucessivamente professor de natação, mascate, noivo oficial de três raparigas lindíssimas, agente secreto de uma potência que não posso mencionar, barman, ilusionista numa trupe de saltimbancos e, por último, exilado político mais uma vez, por ter sido apanhado em flagrante de adultério com a mulher do governador da cidade.
Só me lembro de que algum tempo depois eu almoçava em Tóquio com o poeta Paul Claudel, que era ali embaixador da França ou coisa que o valha, e que trazia três escapulários dependurados no pescoço e vinte medalhas de Nossa Senhora distribuídas por diversas partes do corpo, como proteção em caso de morte súbita e imprevista, a que estava sujeito embora pertencesse à Academia Francesa. Com uma corrente de ouro que lhe consegui roubar, acompanhada do competente relógio, obtive fundos para instalar-me com uma pequena fábrica de pirulitos na cidade de Sendai, onde me naturalizei japonês com o nome de Akiito Furuashi, em homenagem ao príncipe herdeiro do império e a um cavalo de corridas que eu conhecera no prado de Longchamp. Desse meu período nipônico, a recordação mais grata que guardo é a do haraquiri que praticou sob as minhas barbas um obeso sacerdote xintoísta apaixonado por uma gueixa de rara beleza, e cujo cadáver ainda quente eu saqueei com grande proveito e discrição, embora tremendo dos pés à cabeça. Quando o primeiro-ministro Hiroshida mandou fechar minha fábrica de pirulitos, atrás da qual eu mantinha um pequeno bordel onde se podia fumar ópio dia e noite, já eu estava rico o suficiente para desnaturalizar-me japonês e tornar-me de novo um apátrida cidadão do mundo, sem outra preocupação que a de viver a minha vida e de cumprir fielmente o destino que Deus me reservou entre os medíocres e os medrosos de todos os países.

Walter Campos de Carvalho, in A Lua Vem da Ásia

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