Nada
havia de mais prestante em nós senão a infância.
O
mundo começava ali. Nosso campo encostava na beira
do
rio. Um menino Guató chegava de canoa e embicava
no
barranco. Teria remado desde cedo para vir ocupar
a
posição de golquíper no Porto de Dona Emília Futebol
Clube.
Nosso valoroso time. As cercas laterais do campo
eram
de cansanção. Espinheiro fechado pra ninguém botar
defeito.
Guató já trazia do barranco duas pedras para servir
de
balizas. Os craques desciam da cidade como formigas.
José
de Camos, nosso beque de espera também tinha a
incumbência
de soprar as bexigas. Porque a nossa bola
era
de bexiga, que às vezes caiam no rio e as piranhas
devoravam.
E se caísse no cansanção os espinhos furavam.
Nosso
campinho por miúdo só permitia times de sete:
O
goleiro, um beque de espera, um beque de avanço e
três
na linha. Chambalé nosso técnico impunha regras:
só
pode mijar no rio e não pode jogar de botina.
Sabastião
era centroavante. Chutava no rumo certo. Sabia
as
variações da bexiga no vento e botava no grau certo.
Quando
alguém enfiava as unhas na pedra abria uma vaga.
Metade
de nossos craques eram filhos de lavandeiras e
outra
metade de pescadores. Na aba do campo a namorada
do
Sabastião torcia: quebra esse saba, destina eles pras
piranhas.
Mas Chambalé não deixava destinar. Quem destina
é
Deusi – falava. No fim do jogo alguns iam bater bronha,
outros
iam no mato jogar o mantimento e outros iam
pelotear
passarinho. Guató pegava a canoa e remava até
a
aldeia a mil metros dali. A cidade onde a gente morava
foi
feita em cima de uma pedra branca enorme. E o rio
paraguaio,
lá embaixo, corria com suas piranhas
e
os seus camalotes.
Manoel de Barros, in Memórias Inventas – A segunda infância
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