Ponha-se
que estivessem, à barra do campo, de tarde, para descanso. E eram o
Jerevo, Nhoé e Jelázio, vaqueiros dos mais lustrosos. Sentados
vis-a-visantes acocorados, dois; o tércio, Nhoé, ocultado por moita
de rasga-gibão ou casca-branca. Só apreciavam os se-espiritar da
aragem vinda de em árvores repassar-se, sábios com essa
tranquilidade.
Então
que, um quebrou o ovo do silêncio: — “Boi...” — certo
por ordem da hora citava caso de sua infância, do mundo das
inventações; mas o mote se encorpou, raro pela subiteza.
— “Sumido...”
— outro disse, de rês semi-existida diferente. — “O maior”
— segundo o primeiro. — “... erado de sete anos...” —
o segundo recomeçou; ainda falavam separadamente. Porém: — “Como
que?” — de detrás do ramame de sacutiaba Nhoé precisou de
saber.
— “Um
pardo!” — definiu Jelázio. — “... porcelano” —
o Jerevo ripostou. Variava cores. Entanto, por arte de logo,
concordaram em verdade: seria quase esverdeado com curvas escuras
rajas, araçá conforme Jelázio, corujo para o Jerevo, pernambucano.
Dispararam a rir, depois se ouvia o ruidozinho da pressa dos
lagartos.
— “Que
mais?” — distraía-os o fingir, de graça, no seguir da
ideia, nhenganhenga. De toque em toque, as partes se emendavam: era
peludo, de desferidos olhos, chifres descidos; o berro vasto, quando
arruava — mongoava; e que nem cabendo nestes pastos...
Assim
o boi se compôs, ant’olhava-os. Nhoé quis que se fossem dali —
por susto do real, ciente de que com a mulher do Jerevo Jelázio
vadiava — ele houve um pensamento mau, do burro da noite.
De
em diante, no campeio, entre os muitos demais, nem deviam de lembrar
a fiada conversa. Senão que, reunidos, arrumavam prosa de gabanças
e proezas, em folga de rodeio vaquejado; então por vantagem o Jerevo
e Jelázio afirmaram: de vero boi, recente, singular, descrito e
desafiado só pelos três.
Se
alguém ouviu o visto, ninguém viu o ouvido — tinham de
desacreditar o que peta, patranha, para se rir e rir mais — o
reconto não fez rumor. Mas o Nhoé se presenciava, certificativo
homem, de severossimilhanças; até tristonho; porque também
tencionava se recasar, e agora duvidava, em vista do que com casados
às vezes se dá, dissabôres.
Ante
ele, mudaram de dispor, algum introduzindo que quiçás se aviesse de
coisa esperta, bicho duende, sombração; nisso podiam crer, o vento
no ermo a todos concerne. O Boi tomava vulto de fato, vice-avesso.
Nhoé porém mexeu ombros, repelia o dito. Não achava cautela em dar
fiança àquela pública notícia, lá, na que de riquíssimo
fazendeiro Queiroz — fazenda Pintassilga — no Urucuia Superior.
De
feito, se aviavam mais em crédito e fé os três, amigos. De
bandeados lidar ou pousar buscavam toda maneira, nesse meio-mundo,
por secas e tempos-das-águas. O Jerevo tinha casa, a mulher dele
cozia arroz-com-pequi, ela era de simpatia e singeleza sem beleza,
rematava pelo meio dos cabelos o vermelho do lenço, instruía-os de
estroinas novidades: que, por aí, reinava uma guerra, drede iam
remeter para lá a mocidade, o mar, em navio. De tudo Nhoé delongava
opinião, pontual no receio; ainda bem que o escrúpulo da gente
regra as quentes falsidades.
— “Sai,
boi!” — ela troçava mistério deles, do que fino se
bosquejava. O Boi bobo — de estatura. Vai, caprichou Jelázio
de arrenegar essa lembrança, joça. Sisudos, os outros dois se
olhavam, comunheiros, por censuração. Mas depois o Jerevo e Jelázio
falavam de suas mães e meninices e terras, daquilo Nhoé ouvindo
mais o modo que a parla. No de-dentro, as criaturas todas eram
igualadas; no de-fora, só por não perceberem uns dos outros o
escondido é que venciam conviver com afetos de concórdia.
Por
maneira que de febres a mulher do Jerevo faleceu, eles retornavam do
enterro, em conta a tarde chovida de feia, em caminho bastante se
enlameavam, esmoreceram, para beber e esperar. Então, podiam só
indagar o que do Boi, repassado com a memória. Não daquele, bem.
Mas, da outrora ocasião, sem destaque de acontecer, senão que
aprazível tão quieta, reperfeita, em beira de um campo, quando a
informação do Boi tinha sobrevindo, de nada, na mais rasa conversa,
de felicidade. Daí, mencionavam mais nunca o referido urdido —
como não se remexe em restos.
De
certo modo. Mais para diante, o Jelázio morreu, com efeito, inchado
dos rins, o espírito vertido. — “Só a palma do casco...”
— e riu, sem as recorridas palavras. Nhoé e o Jerevo se riam
também, desses altos rastros do Boi, em ponto de pesares. Outras
coisas eram boas; outras, de nem não nem sim, mas sendo.
Demais,
quando foi da peste no gado de todas as partes, o Jerevo avisou
decisão: que se removia, para afastado canto, onde homem cobrava
melhores pagas. Nhoé rejeitou ir junto, nem pertencia a outros lados
diversos — saudoso somente daquele dia de enterro, dela, os três,
a chuva, a lama, à congraça, em entremeio de sofrimento.
Tão
cedo aqui as coisas arrancavam as barbas. O fazendeiro ensandecendo,
diligenciou em vão de matar filhos e mulher, cachorros, gatos. Nem
era rico, nenhum, se soube. O povo depôs que a extravagância dele
procedia do sol, do solcris eclipse, que se deu, mediante que vindo
até desconhecidos estrangeiros, para ver, da banda de Bocaiúva.
Somenos as mulheres, de luto, agora ali regiam, prosseguidamente, na
fazenda Pintassilga.
Nhoé
demudava a cabeça, sem desmazelar, por bambeio, desagradado.
Recurvado. Perfazia tenção em gestos. Tanto não sendo. Sem poder —
nas mãos e calos do laço. Que é que faz da velhice um vaqueiro?
Tirava os olhos das muitas fumaças. Todo o mundo tem onde cair
morto. Achou de bom ir embora.
Voltava
para conturva distância, pedindo perdão aos lugares. Será que lá
ainda com parentes, ele se penava de pobre de esmolas. Chegou a uma
estranhada fazenda, era ao enoitecer, vaqueiros repartidos entre
folhagens de árvores. — “O senhor que mal pergunte...”
— queriam que ao rol deles entrasse. — “A verdade que
diga...” — vozes pretas, vozes verdes, animados de tudo
contavam. Dava nova saudade. Ali, às horas, ao bom pé do fogo,
escutava... Estava já nas cantiguinhas do cochilo.
Refalavam
de um boi, instantâneo. Listrado riscado, babante, façanhiceiro! —
que em várzeas e glória se alçara, mal tantas malasartimanhas —
havia tempos fora. Nhoé disse nada. O que nascido de chifres
dourados ou transparentes, redondo o berro, a cor de cavalo. Ninguém
podia com ele — o Boi Mongoavo. Só três propostos vaqueiros o
tinham em fim sumetido...
Tossiu
firme o velho Nhoé, suspirou se esvaziando, repuxou sujigola e
cintura. Se prazia — o mundo era enorme. Inda que para o mister
mais rasteiro, ali ficava, com socorro, parava naquele certo lugar em
ermo notável.
Guimarães Rosa, in Tutameia
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