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Estou
assustado com os olhos da minha mulher. Ela não consegue enxergar o
lado de fora, e ninguém consegue enxergar lá dentro. Veja, são
como pedras, pedras cinza, pedras marinhas. Olhe para ela. Veja como
está sentada na beirada da cama, sua camisola no chão, rolando nos
dedos a bola de gude de Mohammed, esperando que eu a vista. Estou
ganhando tempo colocando minha camisa e a calça, porque estou muito
cansado de vesti-la. Veja as dobras da sua barriga, a cor de mel do
deserto, mais escura nas dobras, e as linhas muito finas e prateadas
na pele dos seus seios, as pontas dos seus dedos com cortezinhos
minúsculos, onde as formas de encostas e vales já estiveram
manchadas com tinta azul, amarela ou vermelha. Houve época em que
sua risada era ouro, você poderia vê-la, além de escutá-la. Olhe
para ela, porque acho que ela está desaparecendo.
– Tive
uma noite de sonhos dispersos – ela diz. – Eles encheram o
quarto.
Seus
olhos estão fixos um pouco à minha esquerda. Sinto náusea.
– O
que isso quer dizer?
– Eles
eram fragmentados. Estavam por toda parte. E eu não sabia se estava
acordada ou dormindo. Eram muitos os sonhos, como abelhas em um
quarto, como se o quarto estivesse cheio de abelhas. E eu não
conseguia respirar. Acordei e pensei, por favor, faça com que eu não
sinta fome.
Olho
para ela, confuso. Ainda não há expressão. Não lhe conto que
agora só sonho com assassinato, sempre o mesmo sonho. Sou só eu e o
homem, estou segurando o bastão e minha mão está sangrando; no
sonho, os outros não estão lá, e ele está no chão, as árvores
acima dele, e ele me diz alguma coisa que não consigo escutar.
– E
sinto dor – ela diz.
– Onde?
– Atrás
dos olhos. Uma dor bem aguda.
Ajoelho-me
em frente a ela, e olho nos seus olhos. O vazio absoluto que há
neles me aterroriza. Tiro o celular do bolso, acendo a luz da
lanterna neles. Suas pupilas dilatam-se.
– Você
vê alguma coisa? – pergunto.
– Não.
– Nem
ao menos uma sombra, uma mudança de tom ou cor?
– Só
preto.
Enfio
o celular no bolso e me afasto dela. Desde que chegamos aqui, ela
piorou. É como se sua alma estivesse evaporando.
– Você
pode me levar ao médico? – ela pergunta. – Porque a dor está
insuportável.
– Claro
– eu digo. – Logo.
– Quando?
– Assim
que conseguirmos os documentos.
Fico
feliz que Afra não possa ver este lugar. Mas ela gostaria das
gaivotas, do seu jeito maluco de voar. Em Alepo, estávamos longe do
mar. Tenho certeza de que ela gostaria de ver estes pássaros, talvez
até a costa, porque foi criada junto ao mar, enquanto eu sou do
leste de Alepo, onde a cidade encontra o deserto.
Quando
nos casamos e Afra veio viver comigo, sentiu tanta falta do mar que
começou a pintar água onde quer que a encontrasse. Pelo árido
planalto da Síria, há oásis, córregos e rios que deságuam em
pântanos e pequenos lagos. Antes de termos Sami, seguíamos a água,
e ela a pintava com tinta a óleo. Existe uma pintura do Queiq que eu
gostaria de poder rever. Ela fez com que o rio parecesse um
escoamento de águas pluviais fluindo pelo parque da cidade. Afra
tinha esse jeito de ver verdade em paisagens. A pintura, e seu mísero
rio, lembram-me a luta para permanecer vivo. A cerca de trinta
quilômetros ao sul de Alepo, o rio desiste da luta na rigorosa
estepe síria e se evapora nos pântanos.
Os
olhos dela me assustam. Mas estas paredes úmidas, os fios no teto e
os outdoors, não sei como ela lidaria com tudo isto, caso pudesse
ver. O outdoor logo aí fora diz que nosso número é excessivo, que
esta ilha se partirá com nosso peso. Estou feliz que ela esteja
cega. Sei o que isto parece! Se eu pudesse lhe dar uma chave que
abrisse uma porta para outro mundo, desejaria que ela voltasse a ver.
Mas teria que ser um mundo muito diferente deste aqui. Um lugar onde
o sol acaba de nascer, tocando os muros que circundam a cidade
antiga, e fora desses muros, os bairros que parecem alvéolos, as
casas, apartamentos, hotéis e vielas estreitas, uma feira livre onde
mil colares pendurados brilham à primeira luz, e mais longe, pelas
terras do deserto, ouro sobre ouro, vermelho sobre vermelho.
Sami
estaria ali, sorrindo e correndo por aquelas vielas com seus tênis
surrados, uns trocados na mão, a caminho da loja para comprar leite.
Tento não pensar em Sami. Mas Mohammed? Ainda espero que ele
encontre a carta e o dinheiro que deixei debaixo do pote de Nutella.
Acho que um dia haverá uma batida na porta, e quando eu abrir ele
estará ali parado, e eu direi:
– Mas
como você conseguiu chegar aqui, Mohammed? Como soube onde nos
encontrar?
Ontem,
vi um menino pelo espelho embaçado de vapor do banheiro
compartilhado. Ele usava uma camiseta preta, mas quando me virei, era
o homem do Marrocos, sentado no vaso sanitário, mijando.
– Você
deveria trancar a porta – ele disse, em seu próprio árabe.
Não
consigo me lembrar do seu nome, mas sei que ele é de uma aldeia
perto de Taza, no sopé das montanhas Rif. Ontem à noite, ele me
contou que é possível que eles o mandem para o centro de remoção,
em um lugar chamado Yarl’s Wood. A assistente social acha que
existe uma chance de eles fazerem isto. Nesta tarde, é minha vez de
me reunir com ela. O marroquino diz que ela é muito bonita, que
parece uma dançarina de Paris com quem ele uma vez fez amor num
hotel em Rabat, bem antes de se casar com sua esposa. Ele me
perguntou sobre a vida na Síria. Contei sobre as minhas colmeias em
Alepo.
À
noite, a proprietária nos trás chá com leite. O marroquino é
velho, talvez tenha oitenta, ou mesmo noventa anos. Tem a aparência
e o cheiro de quem é feito de couro. Lê Como ser um britânico,
e às vezes sorri consigo mesmo. Fica com o celular no colo, e às
vezes para ao final de cada página para olhar para ele, mas ninguém
nunca telefona. Não sei quem ele está esperando, e não sei como
chegou até aqui, nem por que fez tal viagem com uma idade tão
avançada, porque ele parece alguém à espera de morrer. Ele detesta
a maneira como os não muçulmanos ficam em pé para mijar.
Existe
cerca de dez de nós neste B&B decadente junto ao mar, todos de
lugares diferentes, todos aguardando. É possível que eles nos
aceitem, é possível que nos mandem embora, mas já não há muito o
que decidir. Que estrada tomar, em quem acreditar, se levantar
novamente o bastão e matar um homem. Estas coisas pertencem ao
passado. Logo evaporarão, como o rio.
Pego
o abaya de Afra no cabide do guarda-roupa. Ela escuta e se
levanta, erguendo os braços. Parece mais velha, agora, mas se
comporta como mais nova, como se tivesse se transformado numa
criança. Seu cabelo tem a cor e a textura de areia, já que o
tingimos para as fotos, descorando o tom árabe. Eu o prendo num
coque, e envolvo sua cabeça com seu hijab, fixando-o com
grampos, enquanto ela orienta meus dedos, como sempre faz.
A
assistente social estará aqui à uma da tarde, e todas as reuniões
acontecem na cozinha. Ela vai querer saber como chegamos até aqui, e
procurará um motivo para nos mandar embora, mas eu sei que se disser
as coisas certas, se convencê-la de que não sou um assassino, então
conseguiremos ficar aqui por sermos os que tiveram sorte, porque
viemos do pior lugar do mundo. O marroquino não tem tanta sorte,
terá que provar mais coisas. Agora, ele está sentado na sala de
visitas, junto às portas de vidro, segurando com as duas mãos um
relógio de bolso de bronze, aninhando-o em suas palmas como se fosse
um ovo incubado. Olha para ele, esperando. Pelo quê? Quando me vê
aqui parado, diz:
– Ele
não funciona, sabe? Parou numa hora diferente.
Levanta-o
para a luz pela corrente e sacode-o com delicadeza, este relógio
parado feito de… bronze… era a cor da cidade lá embaixo.
Vivíamos em uma casinha térrea de dois dormitórios, em uma colina.
Lá do alto, podíamos ver toda a arquitetura anárquica e os lindos
domos e minaretes, e mais distante a cidadela apontando.
Era
agradável sentar na varanda na primavera; podíamos sentir o cheiro
da terra do deserto, e ver o sol vermelho recolhendo-se sobre a
terra. Mas no verão, ficávamos dentro de casa com um ventilador
ligado, toalhas molhadas na cabeça, e os pés numa bacia de água
fria porque era quente como um forno.
Em
julho, a terra ficava ressecada, mas em nosso jardim tínhamos
árvores de damasco e amendoeiras, tulipas, íris e coroas-imperiais.
Quando o rio secava, eu descia até o tanque de irrigação para
pegar água para o jardim e mantê-lo vivo. Em agosto era como tentar
ressuscitar um cadáver, então eu via tudo aquilo morrer e se fundir
com o restante da terra. Quando estava mais fresco, dávamos um
passeio e observávamos os falcões voando pelo céu do deserto.
Eu
tinha quatro colmeias no jardim, empilhadas uma em cima da outra, mas
o restante estava num campo na periferia leste de Alepo. Detestava
ficar longe das abelhas. De manhã, eu acordava cedo, antes do sol,
antes do chamado do muezim3 para a oração. Dirigia os cinquenta
quilômetros até os apiários e chegava quando o sol estava
nascendo, os campos cheios de luz, o zumbir das abelhas uma única
nota límpida.
As
abelhas eram uma sociedade ideal, um pequeno paraíso em meio ao
caos. As obreiras viajavam para longe e por um espaço amplo para
encontrar comida, preferindo ir aos campos mais distantes. Coletavam
néctar de flores de limoeiros e trevos, sementes de cominho preto e
anis, eucalipto, algodão, espinheiros e urzes. Eu cuidava das
abelhas, alimentava-as, e monitorava as colmeias para impedir
infestações ou más condições de saúde. Às vezes, eu construía
novas colmeias, dividia as colônias ou criava abelhas-rainha –
tirava as larvas de outra colônia e observava enquanto as abelhas
cuidadoras alimentavam-nas com geleia real.
Mais
tarde, na época da colheita, eu verificava as colmeias para ver
quanto mel as abelhas tinham produzido, e depois punha os quadros com
os favos nos extratores e enchia os baldes, raspando o resíduo para
recolher o líquido dourado por debaixo. Era meu dever proteger as
abelhas, mantê-las saudáveis e fortes, enquanto elas realizavam sua
tarefa de produzir mel e polinizar a terra para nos manter vivos.
Christy Lefteri, in O homem que escutava as abelhas
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