sexta-feira, 7 de outubro de 2022

A Lua Vem da Ásia | Capítulo 334

O Príncipe Danilo, da Viúva Alegre, veio procurar-me e apresentar suas condolências pela morte de minha mãe. Certamente ele tomou ao pé da letra a expressão minha mãe para mim está morta, que usei num momento de revolta ao lembrar-me de minha falsa mãe ao lado do meu algoz verdadeiro, na trágica manhã de ontem.
Esse Príncipe Danilo, que para mim não é príncipe e muito menos o da Viúva Alegre, é uma das novas relações que fiz no agora chamado Pátio dos Milagres (quem ali está só o pode ser por um milagre, já que deveria estar no cemitério, que é o destino que aqui a todos nos espera). Ele e mister Boss, o americano supersônico, são inseparáveis como dois xipófagos, e foi por um instante apenas que ele veio estender-me a mão e manifestar-me o seu pesar, num castelhano castiço e de modo algum de opereta. Mister Boss mediu-me dos pés à cabeça com o olhar feroz, visivelmente enciumado, e depois foi postar-se no seu canto preferido, com o dedo no nariz e as pernas cruzadas como um iogue.
Já me vai aborrecendo a inconsciência com que essa gente se alimenta e se espairece ao sol, como se estivesse apenas numa estação de veraneio e a mil milhas de qualquer perigo iminente. Todos se mostram corados, e o mais das vezes sorridentes e loquazes, embora não nos abandone um só instante o olhar vigilante do grande inquisidor ou de seus agentes disfarçados de enfermeiros. É de ver a alegria com que se atiram à triste comida de sempre — feijão, arroz e um que outro ensopado de carne com batatas — ou, nas horas de recreio, o entusiasmo com que se ouvem mutuamente e sobretudo a si mesmos, sobre assuntos que em geral lhes deveriam interessar muito pouco, já que estão para morrer de uma hora para outra. Nada lhes faz perder a confiança em dias melhores, se é que ainda desejam dias melhores do que estes, e dir-se-ia à primeira vista que realmente estamos vivendo num eterno jardim de infância, onde a cadeira elétrica é não apenas um mito mas coisa inteiramente desconhecida, embora esteja a dois passos de seus ingênuos narizes, por detrás daquelas paredes aonde tantas vezes se recostam e onde escrevem palavras escabrosas nas línguas as mais diversas e inconciliáveis.
De vez em quando surge uma briga, mas logo é contornada pelos menos exaltados e tudo volta à normalidade, como no melhor dos mundos possível. Mister Boss, quando soube que o mulato de lentes poderosas pretendia explorar sozinho o seu petróleo, tentou esganá-lo com todas as forças de suas mãos poderosas, no que foi impedido a tempo pelo suave Príncipe Danilo, que acabara de entoar uma ária da Viúva Alegre. De outra feita foi um senhor barbudo e respeitável — prof. Dilthey, se não me engano — quem desferiu um soco violento no olho esquerdo do fabricante de bilboquês, só porque este lhe disse que a Ásia é maior do que a África e tentara provar com bons modos sua audaciosa teoria. Quando separaram os dois, o tal prof. Dilthey (se não me engano) tinha o cós das calças todo rasgado e deixava aparecer a metade de uma nádega ainda mais peluda do que o rosto, o que provocou uma hilaridade geral e foi como que verdadeira água na fervura.
O potentado hindu a quem vendi minha coleção de palitos de fósforo agora deu para colecionar pulgas, vivas ou mortas, e é de ver a alegria com que acorre a um de nós para mostrar o seu último espécime, geralmente colhido nas próprias cuecas ou nas frestas do assoalho do seu quarto, que examina com a meticulosidade de um arqueólogo no túmulo dos faraós. Quanto tiver cem mil, há de mandá-las em registrado expresso ao atual rei da Inglaterra, que também é dado a coleções, pedindo em troca apenas o título de s/r, que já tem sido dado a gente muito menos importante e que, com pulgas ou sem elas, nunca o mereceu. Pensa também mandar alguns exemplares ao Museu Britânico, como contribuição ao estudo das pulgas através dos tempos, mas isso caso lhe sobre algum tempo dos muitos afazeres em que se acha atualmente empenhado e que sobem, segundo o seu cálculo, exatamente a doze mil.
Outro tipo que me parece inconsciente do grande drama que estamos vivendo, como a grande maioria aliás, é o cada vez mais ridículo sobrinho torto de Napoleão Bonaparte, que teve a audácia de vir propor-me um concubinato ilegal e secreto, dado que não dispomos de mulheres e temos necessidade de perpetuar a espécie, de uma forma ou de outra. Esse repelente indivíduo, que nem sequer tem a desculpa de ser bonito, chegou a exibir-me suas pernas musculosas e cheias de pelos, como prova da honestidade da sua proposta, quando um dia conversávamos sobre a história da França e outros assuntos de relativa importância. Repeli-o à altura, embora o calor fosse muito forte, e desde então passei a encará-lo com natural desprezo e mesmo com altivez, mal respondendo aos seus cumprimentos cheios de reverência, como se fosse eu o sobrinho de Napoleão e não ele.
Outro dia, num feriado nacional, justamente quando todos se punham a cantar o hino nacional tocado ao piano por um maestro que não tem um só dente na boca, um cavalheiro exaltado subiu a uma cadeira e pôs-se a gritar contra as instituições vigentes e sobretudo contra a república da Nicarágua, proferindo palavras pesadíssimas e do mais baixo calão, que a todos impressionaram muito desfavoravelmente e quase deram motivo a um tumulto de consequências imprevisíveis. A custo conseguiram dominar o terrível anarquista e amarrá-lo numa camisa de força de procedência inglesa, como pude verificar pelo rótulo ainda preso a uma das alças e que trazia nitidamente o nome de Stratford-on-Avon. Esse cidadão de maus bofes é o mesmo que, dias antes, tentara enforcar-se com a bandeira nacional, que se achava içada a meio-pau pela morte de um presidente da República, justificando esse seu gesto extremo pelas más condições higiênicas do estabelecimento, com o seu número sempre crescente de ratos e de pulgas, apesar da caça feroz que a estas últimas vem empreendendo ultimamente o simpático potentado hindu. Pelo menos, bem ou mal, esse é um dos poucos a blaterar contra a ignomínia a que nos querem submeter as forças da prepotência governamental, embora também por vezes se mostre afável e conformado como todos os outros, quando a bílis não o incomoda muito e acontece nos servirem frango ensopado às refeições.
E assim, com todas essas farsas e quase tragédias, felizmente sem maiores consequências, vão escoando-se as horas e dos dias neste vale de lágrimas que para nós é a derradeira das provações, já que o Apocalipse de são João é um fato e não uma impostura, e que de um momento para outro o céu desabará sobre as nossas cabeças e as chamas penetrarão pelas nossas narinas, reduzindo-nos à ínfima condição de pó de alvaiade, da qual talvez nunca devêramos ter saído.

Walter Campos de Carvalho, in A Lua Vem da Ásia

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