O
Príncipe Danilo, da Viúva Alegre, veio procurar-me e apresentar
suas condolências pela morte de minha mãe. Certamente ele tomou ao
pé da letra a expressão minha mãe para mim está morta, que usei
num momento de revolta ao lembrar-me de minha falsa mãe ao lado do
meu algoz verdadeiro, na trágica manhã de ontem.
Esse
Príncipe Danilo, que para mim não é príncipe e muito menos o da
Viúva Alegre, é uma das novas relações que fiz no agora chamado
Pátio dos Milagres (quem ali está só o pode ser por um milagre, já
que deveria estar no cemitério, que é o destino que aqui a todos
nos espera). Ele e mister Boss, o americano supersônico, são
inseparáveis como dois xipófagos, e foi por um instante apenas que
ele veio estender-me a mão e manifestar-me o seu pesar, num
castelhano castiço e de modo algum de opereta. Mister Boss mediu-me
dos pés à cabeça com o olhar feroz, visivelmente enciumado, e
depois foi postar-se no seu canto preferido, com o dedo no nariz e as
pernas cruzadas como um iogue.
Já
me vai aborrecendo a inconsciência com que essa gente se alimenta e
se espairece ao sol, como se estivesse apenas numa estação de
veraneio e a mil milhas de qualquer perigo iminente. Todos se mostram
corados, e o mais das vezes sorridentes e loquazes, embora não nos
abandone um só instante o olhar vigilante do grande inquisidor ou de
seus agentes disfarçados de enfermeiros. É de ver a alegria com que
se atiram à triste comida de sempre — feijão, arroz e um que
outro ensopado de carne com batatas — ou, nas horas de recreio, o
entusiasmo com que se ouvem mutuamente e sobretudo a si mesmos, sobre
assuntos que em geral lhes deveriam interessar muito pouco, já que
estão para morrer de uma hora para outra. Nada lhes faz perder a
confiança em dias melhores, se é que ainda desejam dias melhores do
que estes, e dir-se-ia à primeira vista que realmente estamos
vivendo num eterno jardim de infância, onde a cadeira elétrica é
não apenas um mito mas coisa inteiramente desconhecida, embora
esteja a dois passos de seus ingênuos narizes, por detrás daquelas
paredes aonde tantas vezes se recostam e onde escrevem palavras
escabrosas nas línguas as mais diversas e inconciliáveis.
De
vez em quando surge uma briga, mas logo é contornada pelos menos
exaltados e tudo volta à normalidade, como no melhor dos mundos
possível. Mister Boss, quando soube que o mulato de lentes poderosas
pretendia explorar sozinho o seu petróleo, tentou esganá-lo com
todas as forças de suas mãos poderosas, no que foi impedido a tempo
pelo suave Príncipe Danilo, que acabara de entoar uma ária da Viúva
Alegre. De outra feita foi um senhor barbudo e respeitável — prof.
Dilthey, se não me engano — quem desferiu um soco violento no olho
esquerdo do fabricante de bilboquês, só porque este lhe disse que a
Ásia é maior do que a África e tentara provar com bons modos sua
audaciosa teoria. Quando separaram os dois, o tal prof. Dilthey (se
não me engano) tinha o cós das calças todo rasgado e deixava
aparecer a metade de uma nádega ainda mais peluda do que o rosto, o
que provocou uma hilaridade geral e foi como que verdadeira água na
fervura.
O
potentado hindu a quem vendi minha coleção de palitos de fósforo
agora deu para colecionar pulgas, vivas ou mortas, e é de ver a
alegria com que acorre a um de nós para mostrar o seu último
espécime, geralmente colhido nas próprias cuecas ou nas frestas do
assoalho do seu quarto, que examina com a meticulosidade de um
arqueólogo no túmulo dos faraós. Quanto tiver cem mil, há de
mandá-las em registrado expresso ao atual rei da Inglaterra, que
também é dado a coleções, pedindo em troca apenas o título de
s/r, que já tem sido dado a gente muito menos importante e que, com
pulgas ou sem elas, nunca o mereceu. Pensa também mandar alguns
exemplares ao Museu Britânico, como contribuição ao estudo das
pulgas através dos tempos, mas isso caso lhe sobre algum tempo dos
muitos afazeres em que se acha atualmente empenhado e que sobem,
segundo o seu cálculo, exatamente a doze mil.
Outro
tipo que me parece inconsciente do grande drama que estamos vivendo,
como a grande maioria aliás, é o cada vez mais ridículo sobrinho
torto de Napoleão Bonaparte, que teve a audácia de vir propor-me um
concubinato ilegal e secreto, dado que não dispomos de mulheres e
temos necessidade de perpetuar a espécie, de uma forma ou de outra.
Esse repelente indivíduo, que nem sequer tem a desculpa de ser
bonito, chegou a exibir-me suas pernas musculosas e cheias de pelos,
como prova da honestidade da sua proposta, quando um dia
conversávamos sobre a história da França e outros assuntos de
relativa importância. Repeli-o à altura, embora o calor fosse muito
forte, e desde então passei a encará-lo com natural desprezo e
mesmo com altivez, mal respondendo aos seus cumprimentos cheios de
reverência, como se fosse eu o sobrinho de Napoleão e não ele.
Outro
dia, num feriado nacional, justamente quando todos se punham a cantar
o hino nacional tocado ao piano por um maestro que não tem um só
dente na boca, um cavalheiro exaltado subiu a uma cadeira e pôs-se a
gritar contra as instituições vigentes e sobretudo contra a
república da Nicarágua, proferindo palavras pesadíssimas e do mais
baixo calão, que a todos impressionaram muito desfavoravelmente e
quase deram motivo a um tumulto de consequências imprevisíveis. A
custo conseguiram dominar o terrível anarquista e amarrá-lo numa
camisa de força de procedência inglesa, como pude verificar pelo
rótulo ainda preso a uma das alças e que trazia nitidamente o nome
de Stratford-on-Avon. Esse cidadão de maus bofes é o mesmo que,
dias antes, tentara enforcar-se com a bandeira nacional, que se
achava içada a meio-pau pela morte de um presidente da República,
justificando esse seu gesto extremo pelas más condições higiênicas
do estabelecimento, com o seu número sempre crescente de ratos e de
pulgas, apesar da caça feroz que a estas últimas vem empreendendo
ultimamente o simpático potentado hindu. Pelo menos, bem ou mal,
esse é um dos poucos a blaterar contra a ignomínia a que nos querem
submeter as forças da prepotência governamental, embora também por
vezes se mostre afável e conformado como todos os outros, quando a
bílis não o incomoda muito e acontece nos servirem frango ensopado
às refeições.
E
assim, com todas essas farsas e quase tragédias, felizmente sem
maiores consequências, vão escoando-se as horas e dos dias neste
vale de lágrimas que para nós é a derradeira das provações, já
que o Apocalipse de são João é um fato e não uma impostura, e que
de um momento para outro o céu desabará sobre as nossas cabeças e
as chamas penetrarão pelas nossas narinas, reduzindo-nos à ínfima
condição de pó de alvaiade, da qual talvez nunca devêramos ter
saído.
Walter Campos de Carvalho, in A Lua Vem da Ásia
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