Um
poeta da geração de 45, meu amigo (há desses milagres), contou-me
que sua glória transpusera enfim o limite do bar Vilarino e se
projetara nos Estados Unidos. Uma revista da Madison Avenue
pedira-lhe versos, traduzira-os limpamente e pagara por eles quantia
que nunca jornal algum, nestas brenhas, ousou soltar por trabalho
desse naipe.
— Mil
contos? — perguntei-lhe, assanhadíssimo.
— Tanto
assim, não. Vinte dólares. Mas o versinho era curto, sem métrica.
Legal, não acha?
Não
dá para um automóvel, pensei comigo, mas felicitei o rapaz, quand
même. Sem intenção de pedir-lhos emprestados; a fraternidade
das gerações não chega a esse ponto. Em todo caso, apeteceu-me
espiar a cor do dinheiro forte.
— Amigo,
vi poucos dólares em minha vida. Viagem mesmo, faço a de lotação
para a cidade, e ando farto da efígie de Rio Branco. Me mostre seu
dolarzinho.
— Bem,
devo explicar que dos meus vinte dólares poéticos, o governo
norte-americano papou seis, de imposto de renda. Cobrado na fonte,
hem?
Não
pude eximir-me de admirar o dom de locomoção desse governo, que vai
à própria fonte de Castália para haver o tributo da poesia. Onde
se esboce um voo lírico, na América do Norte, vela um fiscal do
Income Tax. Aqui, os poetas não devem a César, pelo exercício da
musa.*
— De
qualquer maneira, catorze dólares são catorze dólares —
sentenciei, mais para confortar o jovem confrade que como eco de
convicção profunda. — Ora, deixe ver os catorze dólares.
— O
cheque?
— Não,
a espécie, a figurinha da águia.
— Bem,
não houve propriamente dólares. O cheque dizia esse nome santo, mas
o caixa, no banco americano que o descontou, explicou-me que dólar é
a mesma coisa que cruzeiro.
— E
você acreditou?
— Era
acreditar ou largar. Disse-me que, onde quer que eu levasse o cheque,
me pagariam em cruzeiros, a menos que eu fosse a Nova York receber na
matriz. Tentei argumentar que aquilo era uma importação de
capitais, saudável à pátria: a tal revista possuía catorze
dólares em Nova York, e por artes de um simples poema hermético,
esses dólares vinham dinamizar a economia brasileira. O banco os
desembolsaria aqui, mas ficaria com outros catorze em Nova York para
importação de tratores, geladeiras etc.
— E
ele?
— Sorriu,
mas ponderou que eram ordens da Carteira de Câmbio do Banco do
Brasil. E tinha mais: ia pagar-me ao preço de compra, não ao de
venda do dólar. Mas eu não estou vendendo, estou recebendo,
retruquei ao caixa. Ele abanou a cabeça. “Também não está
comprando; então, aplica-se a cotação de venda, que mais nos
convém.” Em resumo: saí com mil e vinte e nove cruzeiros no
bolso, um tanto confuso. Veja o que é o dólar: a primeira
oportunidade que me dão de possuir vinte, logo de saída perco seis,
e os outros se dissolvem no ar em simples cruzeiros. Há quem os
venda e quem os compre, mas ninguém os vê. Tenho a impressão de
que dólar não existe, apesar de tão forte, ou por isso mesmo.
Era
também velha impressão minha. O dólar, como a girafa, não existe.
O poeta da geração de 45 ganhara, além dos cruzeiros, outra
metáfora. Fomos ingerir um chope.
*
Isto em 1957. Agora, devem. (N. A.)
Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira
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