Lulu me trouxe mudas de viuvinha. Há anos não punha os olhos num ramo desses. O roxo, o perfume, a folha oleosa, o tempo em que tudo estava para acontecer trouxeram minha mãe de volta. Se parece com boca-de-leão, orquideazinha roxa, glamurosa melancolia. Que gratidão senti por ainda ter viuvinhas. Dá o ano inteiro, ouviu? É, Olímpia, é viúva alegre. Lulu havia me contado a última do Alcenir e eu viajava longe no detalhe dele chamar a Izaltina de bocetuda. Certas palavras me derrubam, fiquei com raiva da mulher, tratada assim e continuar passando a roupa dele, fazendo todo santo domingo molho pardo pro gorila, tão ansiosa, ‘tenho que ir, Alcenir hoje tem reunião da Upac’. Então, tá. Bocetuda? Um míssil na minha cabeça faria menos estrago. Será que a Izaltina gosta? O pernóstico só exibe a neta de olho clarinho, só conversa com o genro formado. Devo descontar na minha preguiça do Alcenir uma questão de estética, de forma. Não é só por suposta virtude que quero castigar o homem. Debaixo desta barafunda de consciência grossa, fina, União de Pais Católicos, sacrifícios, descalabros, caras de pau e heroísmo anônimo, este cascalhal onde nos acotovelamos vestidos e compostos como humanos, há o que aproveitar. Trata-se de cascalho rico. Antes de Martinho Lutero, John Hus disse o que pensava sobre o assunto. Tudo é vasto e polifônico. Nua e crua, a verdade é peixe difícil de pegar, cada um acha um caco, um retalhinho dela reluzente. De serventia, mas caquinho, como os que providenciamos enfumaçados em chama de vela, indispensáveis aparelhos para ver sem perigo de queimar os olhos ‘o formidável eclipse total do sol com visibilidade privilegiada no Brasil’, em Urucânia, lugar desconhecido nosso, em Minas Gerais, que sorte! O locutor não perdia a chance apocalíptica de mostrar serviço. Outra igual só no suicídio de Getúlio Vargas, que também escureceu o Brasil. Vivemos a excitação dos primeiros cristãos esperando a vinda imediata de Cristo, levando a vida meio escoteiros, naquele ânimo feliz de tá bom mas ainda vai ficar melhor, naquele estado eufórico de acampamento e piquenique, um batente bom, até muito bom mesmo, fácil de aturar. Nós todos, meninada e gente grande, indo para as casas uns dos outros, nos ajuntando em grupos na rua. Sabe-se lá? De repente o mundo acabava mesmo, que delícia! A mãe falou assim: ‘tererá’ perigo de chover enquanto dura o eclipse? Pelo sim, pelo não, pelo eclipse em si mesmo, tirou a roupa do varal, fritou uns biscoitos e tocamos pra casa de meu avô, onde já estavam Tialzi, tio Dan, tia Ceiça com a filharada. Foi parecido com o fim do mundo, o sol foi sumindo debaixo de u’a mancha preta, e as galinhas começaram a chegar do mato procurando poleiro como faziam ao entardecer, tão escuro ficou que apareceram estrelas. Junto veio um frio, e a mãe passando mal precisou de chá e foi pra cama com cobertores. Só melhorou pra valer quando o sol foi de novo aparecendo e as galinhas provaram que estava tudo normal porque desceram dos poleiros. ‘Sererá’ que o eclipse vai gorar os ovos? Esta preocupação comezinha de nossa mãe trouxe de volta o cotidiano seguro. Foi transcendente. Não terereve perigo nenhum.
Adélia Prado, in Quero minha mãe
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