— Uê,
ocê é o chim?
— Sou,
sim, o chim sou.
O
cule cão.
Em
puridade de verdade; e quem viu nunca tal coisa? No meio de Minas
Gerais, um joãovagante, no pé-rapar, fulano-da-china — vindo,
vivido, ido — automaticamente lembrado. Tudo cabe no globo.
Cozinhava, e mais, na casa do Dr. Dayrell, engenheiro da Central.
Sem
cabaia, sem rabicho, seco de corpo, combinava virtudes com mínima
mímica; cabeça rapada, bochêchas, o rosto plenilunar. Trastejava,
de sol-nascente a vice-versa, sério sorrisoteiro, contra rumor ou
confusão, por excelência de técnica. Para si exigia apenas, após
o almoço, uma hora de repouso, no quarto. — “Joaquim vai
fumar...” — cigarros, não ópio; o que pouco explicava.
Nome
e homem. Nome muito embaraçado: Yao Tsing-Lao — facilitado para
Joaquim. Quim, pois. Sábio como o sal no saleiro, bem inclinado.
Polvilhava de mais alma as maneiras, sem pressa, com velocidade.
Sabia pensar de-banda? Dele a gente gostava. O chinês tem outro modo
de ter cara.
Dr.
Dayrell partiu e deixou-o a zelar o sítio da Estrada. Trenhoso,
formigo, Tsing-Lao prosperou, teve e fez sua chácara pessoal: o
chalé, abado circunflexo, entre leste-oeste-este bambus, árvores,
cores, vergel de abóboras, a curva ideia de um riacho. Morava,
porém, era onde em si, no cujo caber de caramujo, ensinado a ser,
sua pólvora bem inventada.
Virara
o Seô Quim, no redor rural. A mourejar ou a bizarrir,
indevassava-se, sem apoquenturas: solúveis as dificuldades em sua
ponderação e aprazer-se. Sentava-se, para decorar o chinfrim de
pássaros ou entender o povo passar. Traçava as pernas. Esperar é
um à-toa muito ativo.
E
— vai-se não ver, e vê-se! Yao o china surgiu sentimental.
Xacoca, mascava lavadeira respondedora, a amada, por apelido Rita
Rola — Lola ou Lita, conforme ele silabava, só num cacarejo de fé,
luzentes os olhos de ponto-e-vírgula. Feia, de se ter pena de seu
espelho. Tão feia, com fossas nasais. Mas, havido o de haver.
Cheiraram-se e gostaram-se.
De
que com um chinês, a Rola não teve escrúpulo, fora ele de laia e
igualha — pela pingue cordura e façatez, a parecença com ninguém.
Quim olhava os pés dela, não humilde mas melódico. Mas o amor
assim pertencia a outra espécie de fenômenos? Seu amor e as
matérias intermediárias. O mundo do rio não é o mundo da ponte.
Yao
amante, o primeiro efeito foi Rita Rola semelhar mesmo Lola-a-Lita —
desenhada por seus olhares. A gente achava-a de melhor parecer, senão
formosura. Tomava porcelana; terracota, ao menos; ou recortada em
fosco marfim, mudada de cúpula a fundo. No que o chino imprimira
mágica — vital, à viva vista: ela, um angu grosso em fôrma de
pudim. Serviam os dois ao mistério?
Ora,
casaram-se. Com festa, a comedida comédia: nôivo e nôiva e bolo. O
par — o compimpo — til no i, pingo no a, o que de ambos,
parecidos como uma rapadura e uma escada. Ele, gravata no pescoço,
aos pimpolins de gato, feliz como um assovio. Ela, pompososa, ovante
feito galinha que pôs. Só não se davam o braço. No que não, o
mundo não movendo-se, em sua válida intraduzibilidade.
Nem
se soube o que se passaram, depois, nesse rio-acima. Lolalita
dona-de-casa, de panelas, leque e badulaques, num oco. Quim, o
novo-casado, de mesuras sem cura, com esquisitâncias e
coisinhiquezas, lunático-de-mel, ainda mais felizquim. Deu a ela um
quimão de baeta, lenço bordado, peça de seda, os chinelinhos de
pano.
Tudo
em pó de açúcar, ou mel-e-açúcar, mimo macio — o de valor
lírico e prático. Ensinava-lhe liqueliques, refinices — que
piqueniques e jardins são das mais necessárias invenções? Nada de
novo. Mas Rola-a-Rita achava que o que há de mais humano é a gente
se sentar numa cadeira. O amor é breve ou longo, como a arte e a
vida.
De
vez, desderam-se, o caso não sucedeu bem. O silêncio pôde mais que
eles. Ou a sovinice da vida, as inexatidões do concreto imediato, o
mau-hálito da realidade.
Rita
a Rola se assustou, revirando atrás. Tirou-se de Quim, pazpalhaço,
o dragão desengendrado. Desertou dele. Discutiam, antes — ambos de
cócoras; aquela conversação tão fabulosa. E nunca há fim, de
patacoada e hipótese.
Rola,
como Rita, malsinava-o, dos chumbos de seu pensamento, de coisa qual
coisa. Chamou-o de pagão. Dizia: — “Não sou escrava!”
Disse: — “Não sou nenhuma mulher-da-vida...” Dizendo: —
“Não sou santa de se pôr em altar.” De sínteses não
cuidava.
Vai
e vem que, Quim, mandarim, menos útil pronunciou-se: — “Sim,
sim, sei...” — um obtempero. Mais o: — “T’s, t’s,
t’s...” — pataratesco; parecia brincar de piscar, para uma
boa compreensão de nada. Falar, qualquer palavra que seja, é uma
brutalidade? Tudo tomara já consigo; e não era acabrunhável.
Sínico, sutilzinho, deixou-lhe a chácara, por polidez, com zumbaia.
Desapareceu suficientemente — aonde vão as moscas enxotadas e as
músicas ouvidas. Tivessem-no como degolado.
Rita-a-Rola,
em tanto em quanto, apesar de si, mudara, mudava-se. Nele não
falava; muito demais. — “De que banda é que aquela terra
será?” Apontou-se-lhe, em esmo algébrico, o rumo do Quim
chim, Yao o ausente, da Extrema-Ásia, de onde oriundo: ali vivem de
arroz e sabem salamaleques.
Aprendia
ela a parar calada levemente, no sóbrio e ciente, e só rir. Ora
quitava-se com peneiradinhas lágrimas, num manso não se queixar sem
fim. Sua pele, até, com reflexos de açafrão. — “Tivesse
tido um filho...” — ao peito as palmas das mãos.
Outr’algo
recebera, porém, tico e nico: como gorgulho no grão, grão de
fermento, fino de bússola, um mecanismo de consciência ou cócega.
Andava agora a Lola Lita com passo enfeitadinho, emendado, reto,
proprinhos pé e pé.
Guimarães Rosa, in Tutameia
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