CARTA
ABERTA AO TIMES
Embora
de pijama, vejo-me obrigado a representar a W. Exas. contra o abuso
inominável de que vimos sendo vítimas, eu e outras pessoas
igualmente respeitáveis, num campo de concentração dentre os
muitos que devem existir por este mundo concentrado de hoje, e que
não sei dizer se fica na Europa ou na Ásia ou mesmo na Polinésia,
pois justamente este é o segredo maior que paira sobre as nossas
cabeças, enquanto ainda as temos. Aqui todos falam todas as línguas,
cada um a sua naturalmente, o que pode parecer estranhável é que
nem sempre é o inglês quem fala o inglês, o francês quem fala o
francês, o russo quem fala o russo, e assim por diante, sendo ao
contrário comum que um embaixador da Abissínia, por exemplo, nunca
tenha ouvido falar do abissínio em toda a sua vida, ou que um legado
do Papa não saiba sequer dizer amen em latim, ou ainda que um
descendente de Napoleão Bonaparte só conheça em francês os nomes
das boates mais famosas, como Folies Bergère ou Mandarin e outras
semelhantes. Eu mesmo, que sou iraniano, ou que pelo menos me sinto
iraniano esta manhã, não sei dizer ao certo nem onde fica situado o
Ira no mundo conturbado de hoje, embora já tenha viajado muito no
passado, sobretudo em imaginação.
Mas
o assunto desta, que coloco numa garrafa e jogo no cano de esgoto
para que possa chegar até às mãos de W. Exas., não é geográfico
nem linguístico, e sim estritamente moral e humano, como o foi o
Sermão da Montanha por exemplo, para só citar um exemplo famoso.
Trata-se apenas de despertar a consciência de VV. Exas. para o fato
de, em pleno século XX, e ao que consta em pleno período de paz,
ser permitido a um pequeno grupo de idiotas manter presos e por vezes
mesmo amarrados alguns cidadãos de alta linhagem e de reputação
acima de qualquer suspeita — só porque esses cidadãos, entre os
quais estou eu naturalmente, não pactuam e não poderiam mesmo
pactuar com suas ideias retrógradas e obsoletas, seja em matéria de
religião como de política, de amor como de finanças ou de arte.
Pois o que ocorre neste campo de concentração onde me encontro,
como deve acontecer em todos os demais, é apenas isto e que me
parece de um absurdo inominável: uma minoria armada até os dentes,
inclusive com cadeiras elétricas, manda e desmanda sobre uma maioria
de indivíduos realmente individuais e tenta impor-lhes à força a
sua cartilha de primeiras letras, quando não o seu catecismo
religioso dos tempos antediluvianos, que é a quanto chegam no melhor
dos casos as ideias ou que outro nome tenha a intolerância desses
senhores da terra e dos céus.
A
comida aqui não é má, mesmo porque já faz parte do programa
desses maníacos a preocupação de manterem quanto possível vivos
os seus escravos brancos ou negros, amarelos ou vermelhos — sem o
que teriam, por desfastio, que devorar-se entre si e declarar-se
guerra quase que diariamente, o que não lhes seria de muito
proveito. Mas se a comida não é intragável, a liberdade aqui é
uma palavra que já não existe nem sequer nos dicionários e de que
só ouvimos falar quando somos nós que a pronunciamos, em geral em
voz baixa e para nós mesmos. E sem liberdade, hão de convir W.
Exas. que este mundo, por melhor que seja, não passa de um pesadelo
e de uma farsa de mau gosto — como há de achar no front o soldado
com o seu fuzil e suas polainas, num dia azul de primavera.
Não
temos sequer a liberdade de amar — já não digo uns aos outros, o
que seria demais, mas a uma mulher de nossa predileção, ou mesmo a
uma simples mulher pois as únicas mulheres que vemos ou são
estrábicas ou não têm quaisquer atributos que as diferenciem dos
homens donos do campo, tratando-nos ou como crianças ou como
idiotas, no que aliás copiam um pouco as verdadeiras mulheres. E não
havendo mulheres propriamente ditas, o cérebro emperra e os nervos
sobem à flor da pele, dando azo a esse espetáculo triste e grotesco
da masturbação coletiva, mesmo nos feriados e dias-santos. A única
mulher que tem algo feminino, dentre as poucas que circulam pelas
salas da nossa prisão, é a mulher do inquisidor-mor ou, se W. Exas.
preferem, do chefe da guarda ou administrador do estabelecimento —
mas essa mesmo tem um estrabismo bem pronunciado e é menos acessível
do que a lua no céu ou o seu reflexo no fundo de um poço, dada a
vigilância a que estamos continuamente submetidos. Há casos
profundamente dolorosos, como o do Dr. Keither por exemplo, que se vê
obrigado a masturbar-se como um menino de colégio só porque os
nossos carrascos decidiram que não somos homens até o dia em que
finalmente resolvamos voltar ao aprisco das ideias feitas e ao
cadinho de seus sentimentos desumanizados e postiços. Eu, neste
particular, vivo à custa de minhas boas recordações de todos os
bordéis e salões de luxo que frequentei dos vinte aos trinta e
cinco anos, na Europa, na Ásia, na Oceania, na América, na África,
e sobretudo em sonho. Não que eu fuja à regra geral da masturbação;
mas posso afirmar que sinto muito menos os aguilhões da carne do
que, por exemplo, o legado pontifício ou seu casmurro secretário,
para não falar de um estudante chamado Vinícius e que vive a
recitar a Bíblia justamente naqueles trechos em que a Bíblia
desperta a imaginação da juventude e favorece, de certo modo, as
poluções noturnas.
Mas
tudo isso é muito trágico, eu bem sei, e o pijama não é o traje
apropriado para considerações de tal transcendência, mesmo num
mundo em que o absurdo é cada vez mais a regra geral, ou tende a
sê-lo pelo menos. Em outra oportunidade (caso me arranjem uma outra
garrafa) voltarei ainda ao mesmo assunto, que pode parecer monótono
a W. Exas. mas que para nós é vital e direi mesmo único, já que a
morte do espírito é mil vezes mais trágica do que a morte do
corpo, e que o homem privado da sua liberdade de pensar e de amar
vale menos do que a sua sombra num muro — a menos que se trate
naturalmente de um muro junto ao qual ele esteja sendo fuzilado, com
os olhos bem abertos e a cabeça erguida.
Respeitosas
saudações.
Walter Campos de Carvalho, in A lua vem da Ásia
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