Aconteceu
em São Paulo, por volta de 1933, ou 4. Eu fazia crônicas diárias
no Diário de São Paulo e além disso era encarregado de
reportagens e serviços de redação; ainda tinha uns bicos por fora.
Fundou-se
naquela ocasião um semanário humorístico, O Interventor,
que depois haveria de se chamar O Governador. Seu dono era
Laio Martins, excelente homem de cabelos brancos e sorriso claro,
boêmio e muito amigo. Pediu-me colaboração; o que podia pagar era
muito pouco, mas eu não queria faltar ao amigo. Escrevi algumas
crônicas assinadas. Depois comecei a falhar muito, e como Laio
reclamasse, inventei um pretexto para não escrever. Seu jornal era
excessivamente político (perrepista, se bem me lembro) e eu não
queria tomar partido na política paulista, mesmo porque tinha muitos
amigos antiperrepistas. Laio não se conformou: “Então ponha um
pseudônimo!”
Prometi
de pedra e cal, mas não cumpri. Laio reclamou novamente, me deu um
prazo certo para lhe entregar a crônica. No dia marcado eu estava
atarefadíssimo, e quando veio o contínuo buscar a crônica para O
Interventor eu cocei a cabeça — e tive uma ideia.
Acabara
de ler uma crônica de Carlos Drummond de Andrade no Minas Gerais,
órgão oficial de Minas, com um pseudônimo — algo assim como
Antônio João, ou João Antônio, ou Manuel Antônio, não me lembro
mais; ponhamos Antônio João. Botei papel na máquina, copiei a
crônica rapidamente e lasquei o mesmo pseudônimo.
Dias
depois recebi o dinheiro da colaboração, juntamente com o pedido
urgente de outra crônica e um recado entusiasmado do Laio: a
primeira estava esplêndida!
Daí
para a frente encarreguei um menino da portaria, que estava
aprendendo a escrever à máquina, de bater a crônica de Drummond
para mim; eu apenas revia, para substituir ou riscar alguma
referência a qualquer coisa de Minas. Pregada a mentira e praticado
o crime, o remédio é perseverar nesse rumo hediondo; se às vezes
senti remorso, eu o afogava em chope no bar alemão ao lado, e o
pagava (o chope) com o próprio dinheiro do vale do Antônio João.
O
remorso não era, na verdade, muito: Carlos não sabia de nada, e o
que eu fazia não era propriamente um plágio, porque nem usava
matéria assinada por ele, nem punha o meu nome em trabalho dele. E
Laio Martins sorria feliz, comentando com meu colega de redação: “O
Rubem não quer assinar, mas que importa? Seu estilo é
inconfundível!”
O
estilo era inconfundível e o chope era bem tirado; mas você pode
ter a certeza, Carlos Drummond de Andrade, que muitas vezes eu o bebi
à sua saúde, ou melhor, à saúde do Antônio João, isto é, à
nossa.
Dos
25 mil-réis que Laio me pagava, eu dava 5 para o menino que batia à
máquina; era muito dinheiro para um menino naquele tempo, e isso
fazia o menino feliz. Enfim, lá em São Paulo, todos éramos felizes
graças ao seu trabalho: Laio, o menino, os leitores e eu — e você
em Minas não era infeliz.
Não
creio que possa haver um crime mais perfeito.
Rubem Braga, in A traição das elegantes
Nenhum comentário:
Postar um comentário