Gastei
trinta dias para ir do Rossio Grande ao coração de Marcela, não já
cavalgando o corcel do cego desejo, mas o asno da paciência, a um
tempo manhoso e teimoso. Que, na verdade, há dois meios de granjear
a vontade das mulheres: o violento, como o touro de Europa, e o
insinuativo, como o cisne de Leda e a chuva de ouro de Dânae, três
inventos do padre Zeus, que, por estarem fora da moda, aí ficam
trocados no cavalo e no asno. Não direi as traças que urdi, nem as
peitas, nem as alternativas de confiança e temor, nem as esperas
baldadas, nem nenhuma outra dessas coisas preliminares. Afirmo-lhes
que o asno foi digno do corcel, – um asno de Sancho, deveras
filósofo, que me levou à casa dela, no fim do citado período;
apeei-me, bati-lhe na anca e mandei-o pastar.
Primeira
comoção da minha juventude, que doce que me foste! Tal devia ser,
na criação bíblica, o efeito do primeiro sol. Imagina tu esse
efeito do primeiro sol, a bater de chapa na face de um mundo em flor.
Pois foi a mesma coisa, leitor amigo, e se alguma vez contaste
dezoito anos, deves lembrar-te que foi assim mesmo.
Teve
duas fases a nossa paixão, ou ligação, ou qualquer outro nome, que
eu de nomes não curo; teve a fase consular e a fase imperial. Na
primeira, que foi curta, regemos o Xavier e eu, sem que ele jamais
acreditasse dividir comigo o governo de Roma; mas, quando a
credulidade não pôde resistir à evidência, o Xavier depôs as
insígnias, e eu concentrei todos os poderes na minha mão; foi a
fase cesariana. Era meu universo; mas, ai triste! não o era de
graça. Foi-me preciso coligir dinheiro, multiplicá-lo, inventá-lo.
Primeiro explorei as larguezas de meu pai; ele dava-me tudo o que eu
lhe pedia, sem repreensão, sem demora, sem frieza; dizia a todos que
eu era rapaz e que ele o fora também.
Mas
a tal extremo chegou o abuso, que ele restringiu um pouco as
franquezas, depois mais, depois mais. Então recorri a minha mãe, e
induzi-a a desviar alguma coisa, que me dava às escondidas. Era
pouco; lancei mão de um recurso último; entrei a sacar sobre a
herança de meu pai, a assinar obrigações, que devia resgatar um
dia com usura.
Na
verdade, dizia-me Marcela, quando eu lhe levava alguma seda, alguma
joia; na verdade, você quer brigar comigo... Pois isto é coisa que
se faça... um presente tão caro...
E,
se era joia, dizia isto a contemplá-la entre os dedos, a procurar
melhor luz, a ensaiá-la em si, e a rir, e a beijar-me com uma
reincidência impetuosa e sincera; mas, protestando, derramava-se-lhe
a felicidade dos olhos, e eu sentia-me feliz com vê-la assim.
Gostava muito das nossas antigas dobras de ouro, e eu levava-lhe
quantas podia obter; Marcela juntava-as todas dentro de uma caixinha
de ferro, cuja chave ninguém nunca jamais soube onde ficava;
escondia-a por medo dos escravos. A casa em que morava, nos
Cajueiros, era própria. Era sólidos e bons os móveis, de jacarandá
lavrado, e todas as demais alfaias, espelhos, jarras, baixela, - uma
linda baixela da Índia, que lhe doara um desembargador. Baixela do
diabo, deste-me grandes repelões aos nervos. Disse-o muita vez à
própria dona; não lhe dissimulava o tédio que me faziam esses e
outros despojos dos seus amores de antanho. Ela ouvia-me e ria, com
uma expressão cândida, – cândida e outra coisa, que eu nesse tempo
não entendia bem: mas agora, relembrando o caso, penso que era um
riso misto, como devia ter a criatura que nascesse, por exemplo, de
uma bruxa de Shakespeare com um serafim de Klopstock. Não sei se me
explico. E porque tinha notícia dos meus zelos tardias, parece que
gostava de os açular mais. Assim foi que um dia, como eu lhe não
pudesse dar certo colar, que ela vira num joalheiro, retorquiu-me que
era um simples gracejo, que o nosso amor não precisava de tão
vulgar estímulo.
– Não
lhe perdoo, se você fizer de mim essa triste ideia, concluiu
ameaçando-me com o dedo.
E
logo, súbita como um passarinho, espalmou as mãos, cingiu-me com
elas o rosto, puxou-me a si e fez um trejeito gracioso, um momo de
criança. Depois, reclinada na marquesa, continuou a falar daquilo,
com simplicidade e franqueza. Jamais consentiria que lhe comprassem
os afetos. Vendera muita vez as aparências, mas a realidade,
guardava-a para poucos. O Duarte, por exemplo, o alferes Duarte, que
ela amara deveras, dois anos antes, só a custo conseguia dar-lhe
alguma coisa de valor, como me acontecia a mim; ela só lhe aceitava
sem relutância os mimos de escasso preço, como a cruz de ouro, que
lhe deu, uma vez, de festas.
– Esta
cruz...
Dizia
isto, metendo a mão no seio e tirando uma cruz fina, de ouro, presa
a uma fita azul e pendurada ao colo.
– Mas
essa cruz, observei eu, não me disseste que era teu pai que...
Marcela
abanou a cabeça com um ar de lástima:
– Não
percebeste que era mentira, que eu dizia isso para te não molestar?
Vem cá, chiquito, não sejas assim desconfiado comigo... Amei a
outro; que importa, se acabou? Um dia, quando nos separarmos...
– Não
digas isso! bradei eu.
– Tudo
cessa! Um dia...
Não
pôde acabar; um soluço estrangulou-lhe a voz; estendeu as mãos,
tomou das minhas, conchegou-me ao seio, e sussurrou-me baixo ao
ouvido: – Nunca, nunca, meu amor!
Eu
agradeci-lho com os olhos úmidos. No dia seguinte levei-lhe o colar
que havia recusado.
– Para
te lembrares de mim, quando nos separarmos, disse eu.
Marcela
teve primeiro um silêncio indignado, depois fez um gesto magnífico:
tentou atirar o colar à rua. Eu retive-lhe o braço; pedi-lhe muito
que não me fizesse tal desfeita, que ficasse com a joia. Sorriu e
ficou.
Entretanto,
pagava-me à farta os sacrifícios; espreitava os meus mais
recônditos pensamentos; não havia desejo a que não acudisse com
alma, sem esforço, por uma espécie de lei da consciência e
necessidade do coração. Nunca o desejo era razoável, mas um
capricho puro, uma criancice, vê-la trajar de certo modo, com tais e
tais enfeites, este vestido e não aquele, ir a passeio ou outra
coisa assim, e ela cedia a tudo, risonha e palreira.
– Você
é das Arábias, dizia-me.
E
ia pôr o vestido, a renda, os brincos, com uma obediência de
encantar.
Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas
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