Esses
tontos companheiros que me fazem companhia...
Meio
de moda.
— Isto
não é vida!...
— É
fase de metamorfose.
Do
Entreespelho.
Muito
chovendo e querendo os moços de fora qualquer espécie nova de
recreio, puseram-lhe atenção: feito sob lente e luz espiassem o
jogo de escamas de uma cobra, o arruivar das folhas da urtiga, o fim
de asas de uma vespa. De engano em distância, aparecia-lhes exótico,
excluso. Era o sujeito.
Tinha-se
no caso de notar e troçar. Reapareceu, passou, pelo terreiro de
frente da fazenda,
atolava-se
pelejando na lama lhôfa do curral. Mechéu, por nome Hermenegildo;
explicou-o o fazendeiro Sãsfortes.
Semi-imbecil
trabalhava, vivia, moscamurro, raivancudo, senão de si não gostando
de ninguém. Ante tudo enfuriava-se pronto às mínimas e niglingas —
rasgadela na roupa, esbarro involuntário ou nele fixarem olhar,
pisar-lhe um porco o pé na hora da ração. Dava-se de não
responsável de todo malfeito seu, desordem, descuido. Exigia para si
o bom respeito das coisas.
Topou
em toco, por exemplo, certa danada vez, quando levava aos camaradas
na roça o almoço, desceu então o caixote da cabeça, feroz, de
fera: para castigar o toco, voltou pela espingarda; já a comida é
que mais não achou, que por bichos devorada! — e culpou de tudo a
cozinheira. Sempre via o mal em carne e osso. Se quebrava xícara,
atribuía-o à guilha da que coara o café; se do prato lavado em
água fria não saía a gordura, incriminava o sangrador do suíno ou
o salgador do toucinho; se o leite talhava, era por conta de quem
buscara as vacas.
Melhor
consigo mesmo se entendia, a meio de rangidos e resmungos. — Xiapo
montão! — xingava, por diabo grande, gago,
descompletado; proseava de ter uma só palavra. Entufava o aspecto,
para tantas importâncias; feiancho, mais feio ficava. Opunha ao
mundo as orelhas caramujas, comuns, olhos fundos — o esquerdo
divergente. Com que, não era um ordinário rosto, fisionomia normal
de homem, caricatura? De braços e peito peludos, fechada a barba: o
que é ter a natureza na cara. Só se tardada errada em escopo. Seja
que imperfeito alorpado.
Ainda
abaixo dele, bobo, bem, meio idiota papudo era outro, o que de
alcunha o Gango; tolo tanto, que cheirava as coisas, mas nem sabia
temer as cobras e os lagartos. Simiava-o esse, obediente mirava por
modelo ao Mechéu, maramau, que o tratava de menor, sem estimação,
exigia do Gango uma ideal excelência, forçando-o à lida,
quisesse-o sacado pronto do ovo da estupidez.
Descalço
— não suportava as botinas — punha Mechéu nos dias de serviço
chapéu de palha; e de lebre, igual ao do Patrão, aos domingos,
quando vestia roupa limpa, fazia a barba e saía a passear, a pé,
ou, mau cavaleiro, a cavalo. Tinha o seu próprio, Supra-Vento,
e arreios, jamais emprestados. Não ia à missa, não, nem bebia
cachaça, jurava pelos venenos nas flores, repelia a longe os
animais. Sentava-se, se o não viam, comendo às tripas insensatas.
Superstição sua única era a de que não varressem ou lhe jogassem
água nos pés, o que o impediria de casar. Irava-se, então
entonces. Somente aceitava roupa feita para ele especial; modo algum,
mesmo nova, a cosida para outro: referia os pelos do peito a ter
usado camisa do Neca Velho, vizinho fazendeiro e também hirsuto,
nunca porém vestira camisa do Neca. Mechéu, o firme. — Ele faz
demais questão de continuar sendo sempre ele mesmo... — um dos
moços observou.
Também
de fora viera a menina, nenem, ooó, menininha de inéditos gestos,
olhava para ela o Gango só a apreciar e bater cabeça. Mechéu pois
disse: — Ele é meu parente não! — e a Menininha disse: —
Você é bobo não, você é bom... — e mais a Meninazinha
formosa então cantou: — Michéu, bambéu... Michéu...
bambéu... — pouquinho só, coisa de muita monta, ele se
regalou, arredando dali o Gango, impante, fez fiau nele.
Sumo
prazia-lhe ouvir debicarem alguém: que fulano fora à casa de baiano
e a moça de lá não lhe abrira a porta; beltrano não ia à Vila à
noite, por medo dos lobos; sicrano surrara peixano que sapecara
terciano que sovara marrano, sucessos eis faziam-no rir a pagar, não
risada gargalhal, somenos chiada entre quentes dentes, vai vezes
engasgava-se até, da ocasiãozada. Malvadezas contra outros o
confortavam. A seguir, vigiava, suspeitoso de que sobre ele mesmo
também viessem. Mais o exasperava chamarem-lhe Tatú, apodo
herdado do pai.
Tomava-se
por infalível nôivo de toda e qualquer derradeira sacudida moça
vista, marcava coió o casamento, que em domingo fatal sem falta: —
Bimingo um... bimingo dois... bimingo três! — dedo e dedo
contava. Assaz queria viver mais, e depois dos outros, fora de morte,
ficar para semente. Apareciam-lhe os cabelos brancos, e renegava seus
fossem, sim de um cavalo ruço do Patrão, por nome Vapor. De
si mesmo, de nada nanja duvidava.
Lento
o tempo, Mechéu descascava e debulhava milhos no paiol, fazia o
Gango fazer. Ele agora estava irado com a chuva, e com o Patrão, que
nela não dava jeito. Mas acatava ordens: quando lhe mandaram que
viesse, veio. — Louvem-no — e reprovem alguém, outro — que
ele de gozo empofa... — ensinou Sãsfortes, fazendeiro.
Mechéu
marchava com desajeito, bamba bailava-lhe a perna direita, puxada
pela esquerda. Soturno sáfio ante aqueles parou, turvava-se seu ar
de desconfiança, inveja, queixa. — Será já em si o “eu”
uma contradição? — sob susto e espanto um dos de fora
proferiu. Mas, pensavam consigo mesmos, não para o Mechéu — ilota
e especulário. Deixaram-no de lado.
Tardiamente
apenas se soube o que a seu respeito valesse; depois, anos.
— Mechéu
assim, a vida vira assim... — conta a fazendeira, Dona
Joaquina, inesquecível, branquinhos os cabelos, azúis olhos
bondosos.
Tudo
o comum, copiado; do borrão do viver.
No
que houve que o Gango morreu, chifrado de vaca.
Enquanto
entanto o corpo estando presente, Mechéu nem fez caso, ele não
tinha pelo Gango nenhum encarecimento, nunca o deixava botar mão no
que de seu, nem entrar no cômodo em que assistia, debaixo da casa.
Vez ou vez, mandasse o Gango cantarolar, para as escutar, simplórias
parlendas, o canto sendo dele o nome Mechéu mesmo, em falsete, o
Gango tal afinado papagaio.
Mas,
enterrado aquele, Mechéu aos tentos se estramontou, se cuspindo, se
sumia, o boi em transtorno, desacertado do trabalho. — Está
andando meio exercitado por aí, não se vê o que ele quer... —
vinham dizer, pareceu que descabisbaixo indo obrar o demo em dobro.
Só
da patroa Dona Joaquina se aproximou, de vira vez, perguntou ou
afirmou: — A menininha não morre, não, nunca! De dó, a
Senhora confirmou: — Nunca! — não sabia que menina. De
saudade ou falta do Gango, ele houve pingos nos olhos, inquiriu: —
Nem eu!? Rezingava, pois assim, gueta, pataratices, mais frases:
sobre os passarinhos, bem apresentados, o sol nas roças, o
Supra-Vento, cavalo, ao qual por prima vez agradecesse.
Mas
mesmo enfermou, daí, pessoalmente, de novembro para diante, repuxado
e esmorecido, se esforçava com um tremor, sua pesadume remédios não
paliavam. Ora fim que enfim se fechou no escuro cômodo, por mais de
um dia, surgindo no seguinte aceitou o caneco com chá amargo,
restava guedelhudado, rebarbado, os olhos mais cavos, demudado das
feições.
Decerto
não aguentava o que lhe vinha para pensar, nem vencia achar o de que
precisava, só sacudia as pálpebras, com tantas rotações no
pescoço: gesticulava para nenhum interlocutor; rodou, rodou, no
mesmo lugar, passava as mãos nas árvores.
Muito
devagar, sempre com cheio o caneco seguro direitinho, veio para junto
do paredão do bicame, lá sozinho ficou parado um tempo, até ao
entardecer. Estava bem diferente, etc., esperando um tudo diferente.
Não
falemos mais dele.
Guimarães Rosa, in Tutameia
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