Eu
tenho idade suficiente para ser convocado quando eclode a Segunda
Guerra Mundial, mas, mesmo assim, durante as primeiras vidas, de
alguma forma eu consegui evitar todos os momentos dramáticos do
conflito, sobre os quais leria com conforto nos anos 1980. Na
primeira vida eu me alistei por vontade própria, acreditando de
verdade nas três grandes falácias daquele tempo — de que a guerra
seria breve, de que a guerra seria pelo bem da pátria e de que a
guerra potencializaria minhas habilidades. Perdi o embarque para a
França por quatro dias e me senti extremamente desapontado comigo
mesmo por não ter sido evacuado em Dunquerque, o que, na época,
parecia uma derrota triunfante. A sensação foi de que meu primeiro
ano de guerra se passou em intermináveis exercícios de treinamento,
primeiro nas praias, enquanto a nação — e eu me incluo nisso —
esperava pela invasão que não aconteceu; depois, nas montanhas da
Escócia, quando o governo começou a surgir com possíveis
represálias. Passei tanto tempo treinando para a invasão à Noruega
que, quando por fim desistiram da ideia, eu e minha unidade fomos
considerados inúteis para a batalha no deserto que fomos impedidos
de fazer o embarque inicial rumo ao palco do Mediterrâneo até que
fôssemos retreinados ou surgisse algo em que fôssemos úteis. Nesse
sentido, pode-se dizer que alcancei um dos meus objetivos, pois, como
parecia que ninguém queria que lutássemos, eu me vi sem mais nada a
fazer além de estudar e aprender. Um médico da nossa unidade foi um
opositor que tivera os escrúpulos moldados pelos trabalhos de Engels
e pela poesia de Wilfred Owen, e a quem todos os homens da unidade,
inclusive eu, considerávamos um janota sem personalidade até o dia
em que enfrentou o sargento, que havia abusado do poder durante muito
tempo e em muitas ocasiões, e na frente de todos chamou o superior
de crianção metido a valente que falava soltando perdigotos. O nome
do médico era Valkeith, e ele recebeu uma punição de três dias de
confinamento pelo desabafo, bem como o respeito de toda a unidade.
Sua erudição, antes fonte de escárnio, tornou-se motivo de
orgulho, e, embora ele ainda fosse chamado de janota sem
personalidade, ele passou a ser o nosso janota sem personalidade, e
foi com ele que comecei a aprender os mistérios da ciência, da
filosofia e da poesia romântica, nada ao que eu teria acesso na
época. Ele morreu três minutos e cinquenta segundos após pisarmos
nas praias da Normandia, de um tiro de metralhadora que lhe abriu as
entranhas. Valkeith foi o único da nossa unidade a morrer naquele
dia, pois nos encontrávamos longe da ação, e a arma que disparou o
tiro fatal foi tomada dois minutos depois.
Matei
três homens durante minha primeira vida. Eles estavam juntos, e
todos morreram ao mesmo tempo, durante uma retirada de tanques em um
vilarejo ao norte da França. Havíamos recebido a informação de
que o vilarejo havia sido liberado, de que não haveria resistência,
mas lá estava, entre a padaria e a igreja, como uma mosca numa fatia
de melão. Estávamos tão relaxados que só o notamos quando o tubo
do canhão se movimentou na nossa direção, como o olho de um
crocodilo que se encontra no meio do pântano e abre as mandíbulas
para soltar o disparo que matou dois dos nossos na mesma hora e o
jovem Tommy Kenah três dias depois na cama do hospital. Eu me lembro
de minhas ações com a mesma clareza de que me lembro de tudo mais,
e foram estas: largar o rifle, soltar a mochila no chão e correr,
gritando sem parar um momento, pelo meio da rua, bradando na direção
do tanque que matara meus amigos. Eu não havia fechado a alça do
capacete, e ele caiu a uns dez metros do tanque. Eu conseguia ouvir
os homens se mexerem dentro daquela besta enquanto me aproximava, via
uma fugaz sucessão de rostos dardejando de um lado para outro
através das fendas da blindagem enquanto tentavam mover o tubo do
canhão na minha direção ou subir para controlar metralhadoras, mas
eu já havia chegado. O canhão principal ainda estava quente —
mesmo a quase meio metro de distância eu sentia o calor no rosto.
Larguei uma granada pela escotilha frontal, que estava aberta. Ouvi
os gritos, a agitação lá dentro enquanto tentavam pegá-la, mas
naquele espaço limitado isso só piorou a situação. Eu me lembro
do que fiz, mas não do que pensei. Mais tarde, o capitão disse que
o tanque provavelmente havia se perdido: o esquadrão havia tomado o
caminho da esquerda, e aquele tanque, o da direita, e foi por isso
que eles mataram três dos nossos homens e foram mortos em
contrapartida. Recebi uma medalha, a qual vendi em 1961 quando
precisei comprar um novo aquecedor de água, e senti um enorme alívio
assim que me livrei dela.
Aquela
foi a minha primeira guerra. Eu não me alistei para a segunda. Eu
sabia que eram grandes as chances de ser convocado em breve, então
preferi me fiar nas habilidades que adquiri na primeira vida para me
manter vivo. Na terceira vida eu me juntei à Força Aérea Real como
mecânico em terra e era o primeiro do esquadrão a chegar no abrigo
assim que as sirenas eram acionadas, até que por fim Hitler começou
a bombardear Londres e eu sabia que podia começar a relaxar. Era um
bom lugar para se estar durante os primeiros anos de conflito. Quase
todas as mortes se davam no ar, e o que os olhos não veem o coração
não sente. Os pilotos não interagiam muito conosco, os homens sujos
de graxa, e para mim foi fácil ver o avião como meu único foco de
atenção e considerar o homem que o pilotava apenas mais uma parte
mecânica a ser ignorada e substituída. Então chegaram os
americanos, nós começamos a bombardear a Alemanha, e muito mais
homens morreram no ar, situação que só me fazia lamentar a perda
das máquinas, porém, cada vez mais eles começaram a voltar,
atingidos por tiros de metralhadora, o sangue no chão espesso o
bastante para reter o formato das pegadas que se arrastavam para
todos os lados. Sabendo o que estava por vir, pensei no que poderia
fazer de diferente e concluí que a resposta era nada. Eu sabia que
os Aliados venceriam, mas nunca estudei a Segunda Guerra Mundial numa
perspectiva acadêmica; meus conhecimentos se limitavam à
experiência pessoal, um evento que eu havia vivido, e não a
informações compartilháveis. O máximo que podia fazer era
advertir um homem na Escócia chamado Valkeith para que, na praia da
Normandia, permanecesse na embarcação dois minutos a mais, ou
sussurrasse para o soldado Kenah que, no vilarejo de Gennimont,
haveria um tanque que virara à direita em vez da esquerda e estava à
espreita entre a padaria e a igreja para dar um fim aos seus dias.
Mas eu não possuía informações estratégicas a transmitir, nenhum
aprendizado ou conhecimento além de afirmar que, no futuro, a
Citroën fabricaria carros elegantes e pouco confiáveis e que um dia
as pessoas olhariam para o passado, para a divisão da Europa, e se
perguntariam o motivo daquilo.
Com
base nos meus eloquentes raciocínios, continuei desempenhando meu
papel completamente insignificante na guerra. Lubrifiquei os trens de
pouso dos aviões que destruiriam Dresden; ouvi rumores de
pesquisadores científicos que vinham tentando projetar um motor a
jato e como os engenheiros ridicularizaram a ideia; ouvi o exato
momento em que os motores das bombas V1 pararam e, por um breve
período, o silêncio causado por uma bomba V2 que caíra, e, quando
chegou o Dia da Vitória na Europa, tomei um porre horrível de
conhaque, do que não gosto tanto, com um canadense e dois galeses
que eu conhecera dois dias antes e nunca mais voltei a ver.
E
aprendi. Desta vez, eu aprendi. Aprendi sobre motores e máquinas,
sobre homens e estratégias, sobre a Força Aérea Real e a
Luftwaffe. Estudei padrões de bombardeios, observei onde os mísseis
caíam para que, na vez seguinte — pois eu tinha sessenta por cento
de certeza de que haveria uma vez seguinte, de que tudo aquilo
ocorreria de novo —, eu tivesse mais serventia para mim mesmo, e
possivelmente para os outros, e não me limitasse a falar de algumas
poucas lembranças pessoais sobre a qualidade do presunto enlatado na
França.
No
fim das contas, o mesmo conhecimento que me protegeu do mundo me pôs
em grande perigo tempos mais tarde, e, seguindo essa linha, me
apresentou indiretamente ao Clube Cronus, e o Clube Cronus a mim.
Claire North, in As primeiras quinze vidas de Harry August
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