sexta-feira, 2 de setembro de 2022

As primeiras quinze vidas de Harry August | Capítulo 5

Eu tenho idade suficiente para ser convocado quando eclode a Segunda Guerra Mundial, mas, mesmo assim, durante as primeiras vidas, de alguma forma eu consegui evitar todos os momentos dramáticos do conflito, sobre os quais leria com conforto nos anos 1980. Na primeira vida eu me alistei por vontade própria, acreditando de verdade nas três grandes falácias daquele tempo — de que a guerra seria breve, de que a guerra seria pelo bem da pátria e de que a guerra potencializaria minhas habilidades. Perdi o embarque para a França por quatro dias e me senti extremamente desapontado comigo mesmo por não ter sido evacuado em Dunquerque, o que, na época, parecia uma derrota triunfante. A sensação foi de que meu primeiro ano de guerra se passou em intermináveis exercícios de treinamento, primeiro nas praias, enquanto a nação — e eu me incluo nisso — esperava pela invasão que não aconteceu; depois, nas montanhas da Escócia, quando o governo começou a surgir com possíveis represálias. Passei tanto tempo treinando para a invasão à Noruega que, quando por fim desistiram da ideia, eu e minha unidade fomos considerados inúteis para a batalha no deserto que fomos impedidos de fazer o embarque inicial rumo ao palco do Mediterrâneo até que fôssemos retreinados ou surgisse algo em que fôssemos úteis. Nesse sentido, pode-se dizer que alcancei um dos meus objetivos, pois, como parecia que ninguém queria que lutássemos, eu me vi sem mais nada a fazer além de estudar e aprender. Um médico da nossa unidade foi um opositor que tivera os escrúpulos moldados pelos trabalhos de Engels e pela poesia de Wilfred Owen, e a quem todos os homens da unidade, inclusive eu, considerávamos um janota sem personalidade até o dia em que enfrentou o sargento, que havia abusado do poder durante muito tempo e em muitas ocasiões, e na frente de todos chamou o superior de crianção metido a valente que falava soltando perdigotos. O nome do médico era Valkeith, e ele recebeu uma punição de três dias de confinamento pelo desabafo, bem como o respeito de toda a unidade. Sua erudição, antes fonte de escárnio, tornou-se motivo de orgulho, e, embora ele ainda fosse chamado de janota sem personalidade, ele passou a ser o nosso janota sem personalidade, e foi com ele que comecei a aprender os mistérios da ciência, da filosofia e da poesia romântica, nada ao que eu teria acesso na época. Ele morreu três minutos e cinquenta segundos após pisarmos nas praias da Normandia, de um tiro de metralhadora que lhe abriu as entranhas. Valkeith foi o único da nossa unidade a morrer naquele dia, pois nos encontrávamos longe da ação, e a arma que disparou o tiro fatal foi tomada dois minutos depois.
Matei três homens durante minha primeira vida. Eles estavam juntos, e todos morreram ao mesmo tempo, durante uma retirada de tanques em um vilarejo ao norte da França. Havíamos recebido a informação de que o vilarejo havia sido liberado, de que não haveria resistência, mas lá estava, entre a padaria e a igreja, como uma mosca numa fatia de melão. Estávamos tão relaxados que só o notamos quando o tubo do canhão se movimentou na nossa direção, como o olho de um crocodilo que se encontra no meio do pântano e abre as mandíbulas para soltar o disparo que matou dois dos nossos na mesma hora e o jovem Tommy Kenah três dias depois na cama do hospital. Eu me lembro de minhas ações com a mesma clareza de que me lembro de tudo mais, e foram estas: largar o rifle, soltar a mochila no chão e correr, gritando sem parar um momento, pelo meio da rua, bradando na direção do tanque que matara meus amigos. Eu não havia fechado a alça do capacete, e ele caiu a uns dez metros do tanque. Eu conseguia ouvir os homens se mexerem dentro daquela besta enquanto me aproximava, via uma fugaz sucessão de rostos dardejando de um lado para outro através das fendas da blindagem enquanto tentavam mover o tubo do canhão na minha direção ou subir para controlar metralhadoras, mas eu já havia chegado. O canhão principal ainda estava quente — mesmo a quase meio metro de distância eu sentia o calor no rosto. Larguei uma granada pela escotilha frontal, que estava aberta. Ouvi os gritos, a agitação lá dentro enquanto tentavam pegá-la, mas naquele espaço limitado isso só piorou a situação. Eu me lembro do que fiz, mas não do que pensei. Mais tarde, o capitão disse que o tanque provavelmente havia se perdido: o esquadrão havia tomado o caminho da esquerda, e aquele tanque, o da direita, e foi por isso que eles mataram três dos nossos homens e foram mortos em contrapartida. Recebi uma medalha, a qual vendi em 1961 quando precisei comprar um novo aquecedor de água, e senti um enorme alívio assim que me livrei dela.
Aquela foi a minha primeira guerra. Eu não me alistei para a segunda. Eu sabia que eram grandes as chances de ser convocado em breve, então preferi me fiar nas habilidades que adquiri na primeira vida para me manter vivo. Na terceira vida eu me juntei à Força Aérea Real como mecânico em terra e era o primeiro do esquadrão a chegar no abrigo assim que as sirenas eram acionadas, até que por fim Hitler começou a bombardear Londres e eu sabia que podia começar a relaxar. Era um bom lugar para se estar durante os primeiros anos de conflito. Quase todas as mortes se davam no ar, e o que os olhos não veem o coração não sente. Os pilotos não interagiam muito conosco, os homens sujos de graxa, e para mim foi fácil ver o avião como meu único foco de atenção e considerar o homem que o pilotava apenas mais uma parte mecânica a ser ignorada e substituída. Então chegaram os americanos, nós começamos a bombardear a Alemanha, e muito mais homens morreram no ar, situação que só me fazia lamentar a perda das máquinas, porém, cada vez mais eles começaram a voltar, atingidos por tiros de metralhadora, o sangue no chão espesso o bastante para reter o formato das pegadas que se arrastavam para todos os lados. Sabendo o que estava por vir, pensei no que poderia fazer de diferente e concluí que a resposta era nada. Eu sabia que os Aliados venceriam, mas nunca estudei a Segunda Guerra Mundial numa perspectiva acadêmica; meus conhecimentos se limitavam à experiência pessoal, um evento que eu havia vivido, e não a informações compartilháveis. O máximo que podia fazer era advertir um homem na Escócia chamado Valkeith para que, na praia da Normandia, permanecesse na embarcação dois minutos a mais, ou sussurrasse para o soldado Kenah que, no vilarejo de Gennimont, haveria um tanque que virara à direita em vez da esquerda e estava à espreita entre a padaria e a igreja para dar um fim aos seus dias. Mas eu não possuía informações estratégicas a transmitir, nenhum aprendizado ou conhecimento além de afirmar que, no futuro, a Citroën fabricaria carros elegantes e pouco confiáveis e que um dia as pessoas olhariam para o passado, para a divisão da Europa, e se perguntariam o motivo daquilo.
Com base nos meus eloquentes raciocínios, continuei desempenhando meu papel completamente insignificante na guerra. Lubrifiquei os trens de pouso dos aviões que destruiriam Dresden; ouvi rumores de pesquisadores científicos que vinham tentando projetar um motor a jato e como os engenheiros ridicularizaram a ideia; ouvi o exato momento em que os motores das bombas V1 pararam e, por um breve período, o silêncio causado por uma bomba V2 que caíra, e, quando chegou o Dia da Vitória na Europa, tomei um porre horrível de conhaque, do que não gosto tanto, com um canadense e dois galeses que eu conhecera dois dias antes e nunca mais voltei a ver.
E aprendi. Desta vez, eu aprendi. Aprendi sobre motores e máquinas, sobre homens e estratégias, sobre a Força Aérea Real e a Luftwaffe. Estudei padrões de bombardeios, observei onde os mísseis caíam para que, na vez seguinte — pois eu tinha sessenta por cento de certeza de que haveria uma vez seguinte, de que tudo aquilo ocorreria de novo —, eu tivesse mais serventia para mim mesmo, e possivelmente para os outros, e não me limitasse a falar de algumas poucas lembranças pessoais sobre a qualidade do presunto enlatado na França.
No fim das contas, o mesmo conhecimento que me protegeu do mundo me pôs em grande perigo tempos mais tarde, e, seguindo essa linha, me apresentou indiretamente ao Clube Cronus, e o Clube Cronus a mim.

Claire North, in As primeiras quinze vidas de Harry August

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