segunda-feira, 29 de agosto de 2022

O Lobo do Mar | Capítulo 10

Minha intimidade com Wolf Larsen aumenta, se por intimidade for entendida a relação que existe entre o mestre e seu subordinado, ou melhor, entre o rei e o bobo da corte. Sou apenas um brinquedo para ele, e ele me dá o mesmo valor que uma criança dá a um brinquedo. Minha função é divertir, e enquanto o divirto tudo está bem. Todavia, se permito que ele fique entediado ou seja acometido por um de seus ataques de mau humor, sou expulso da cabine para a cozinha na mesma hora, o que tem a vantagem de me deixar escapar vivo e com o corpo ileso.
Aos poucos, a solidão desse homem começa a me afetar. Não há ninguém a bordo que não o tema ou odeie, e não existe ninguém que ele não despreze. A impressão que se tem é de que ele está sendo consumido por uma tremenda força interior que nunca encontrou expressão adequada em suas atividades. É como se o espírito orgulhoso de Lúcifer tivesse sido condenado a viver numa sociedade de espectros sem alma como no “Tomlinson” de Kipling.
Essa solidão já é ruim o bastante em si mesma, mas, para piorar as coisas, ela é agravada pela melancolia primordial da raça. Agora que o conheço, compreendo melhor os velhos mitos escandinavos. Os selvagens de pele clara e cabelos loiros que criaram aquele panteão terrível eram feitos da mesma fibra que ele. A frivolidade risonha dos latinos não lhe diz respeito. Seu riso provém de um humor nada menos que feroz. Mas ele raramente ri. Quase sempre está triste. É uma tristeza profunda como as raízes de seu povo. Uma herança racial, a mesma tristeza que contaminou sua raça de sobriedade, retidão e moralismo fanático e que, neste último aspecto, culminou entre os ingleses com a Igreja Reformada e a sra. Grundy.
Na verdade, a grande válvula de escape dessa melancolia primordial tem sido a religião em suas facetas mais agonizantes. Para Wolf Larsen, no entanto, as compensações da religião de nada servem. Seu materialismo brutal não o permite. Por isso, ao ser atingido por um estado de ânimo sombrio, resta-lhe apenas agir de modo diabólico. Não fosse ele um homem tão terrível, mereceria a minha pena em certas ocasiões, como ocorreu três manhãs atrás, quando subi até seu camarote para encher a jarra d’água e me deparei inesperadamente com ele. Não me viu. Sua cabeça estava afundada entre as mãos e ele soluçava com uma agitação convulsiva nos ombros. Parecia dominado por uma dor emocional terrível. Recuando em silêncio, pude ouvi-lo resmungar:
Deus! Deus! Deus!
Não estava rogando a Deus, é claro. Eram apenas expletivos, mas brotavam da alma.
Na hora do jantar, ele pediu aos caçadores um remédio para dor de cabeça, e à noite, apesar do homem forte que era, estava cambaleando meio às cegas pela cabine.
Nunca fiquei doente em toda a minha vida, Hump — disse enquanto eu o guiava até o quarto. — E minha cabeça nunca doeu, a não ser quando dei com ela numa barra de cabrestante e abri uma rachadura de quinze centímetros.
A dor de cabeça lancinante durou três dias e ele sofreu como um animal, e da maneira como se sofria naquele navio, sem lamentações, sem compaixão, totalmente sozinho.
Hoje de manhã, porém, quando entrei em seu camarote para arrumar a cama e pôr tudo em ordem, encontrei-o em bom estado e trabalhando com afinco. A mesa e a cama estavam cobertas de planos e cálculos. Com a bússola e o esquadro em mãos, ele estava copiando o que parecia ser alguma espécie de escala numa folha de papel transparente.
Olá, Hump — me saudou alegremente. — Já estou retocando os últimos detalhes. Quer ver como funciona?
Mas o que é isso? — perguntei.
Um mecanismo para poupar o tempo do marinheiro, a navegação reduzida a uma simplicidade de jardim de infância. Chega de cálculos extensos. Você só precisa de uma estrela no céu de uma noite escura para saber exatamente onde está. Veja. Ponho a escala transparente neste mapa sideral e a giro a partir do polo Norte. Na escala estão os círculos de altitude e as linhas de orientação. Tudo que preciso fazer é escolher uma estrela, girar a escala até alinhá-la com esses algarismos embaixo e… pronto! Temos a posição exata do navio.
Havia triunfo em sua voz e seus olhos cintilavam com o mesmo azul-claro do mar.
O senhor deve ser muito bom em matemática — falei. — Onde estudou?
Nunca pisei em uma escola. Precisei desencavar tudo sozinho — ele respondeu, e então me interpelou bruscamente: — Por que acha que inventei essa coisa? Pensa que sonho em deixar pegadas nas areias do tempo? — Ele soltou uma de suas terríveis risadas de escárnio. — Nada disso. Para patenteá-la. Para ganhar dinheiro com ela, para chafurdar em mesquinharias a noite toda enquanto os outros trabalham. Esse é o meu objetivo. Além disso, o processo de invenção me deu prazer.
O prazer criativo — murmurei.
Acho que o nome é esse. É uma outra maneira de expressar o prazer que a vida tem de estar viva, o triunfo do movimento sobre a matéria, dos ágeis sobre os mortos, o orgulho do fermento em ser fermento e rastejar.
Fiz um gesto manifestando minha desaprovação impotente diante de seu materialismo inveterado e continuei a arrumar a cama. Ele seguiu inscrevendo linhas e algarismos na escala transparente. A tarefa exigia capricho e precisão extremos, e não pude deixar de admirar a forma como ele ajustava sua força com a minúcia e a delicadeza necessárias.
Após terminar de arrumar a cama, continuei olhando para ele com um certo fascínio. Era sem dúvida um homem bonito, no sentido masculino. E reparei outra vez, com o mesmo espanto, na total ausência de maldade, crueldade e perversidade daquele rosto. Era o rosto, eu estava convicto, de alguém que não praticava o mal. Não entendam isso de maneira equivocada. Quero dizer que era o rosto de um homem que não agia contra os ditames de sua consciência, ou então que não possuía consciência alguma. Estou inclinado para a segunda hipótese. Era um atavismo magnífico, um homem tão puramente primitivo que se assemelhava àqueles que vieram ao mundo antes do estabelecimento de um senso moral. Ele não era imoral, somente amoral.
Como já disse, ele tinha um belo rosto no sentido masculino. Quando bem-barbeado, todos os seus traços eram distintos, talhados com a precisão de um camafeu. Ao mesmo tempo, o sol e o mar tinham bronzeado sua pele naturalmente branca, conferindo-lhe um tom escuro que remetia a lutas e batalhas e acentuava sua selvageria e sua beleza em igual medida. Seus lábios, apesar de grossos, possuíam aquela firmeza, ou quase dureza, característica dos lábios finos. A disposição da boca, do queixo e da mandíbula também era assim, firme ou dura, e estampava uma tenacidade e um vigor verdadeiramente másculos. O mesmo valia para o nariz. Era o nariz de um ser nascido para conquistar e comandar. Lembrava um pouco o bico da águia. Poderia ter sido grego ou romano, não fosse maciço demais para um e algo delicado para o outro. E, enquanto todo o seu rosto era a encarnação da força e da ferocidade, a melancolia primordial que ele carregava em si dava a impressão de ampliar as linhas da boca, dos olhos e da testa, conferindo ao conjunto uma grandeza e uma integridade que de outro modo poderiam ter faltado.
Não tenho como descrever o quanto ele me interessava. Quem era ele? O que era? De onde tinha surgido? Ele parecia ter todos os poderes, todos os potenciais. Se isso era verdade, por que ele era apenas o comandante obscuro de uma escuna de caça à foca, com uma reputação de brutalidade assustadora entre os homens do ramo?
Minha curiosidade rebentou numa torrente de palavras.
Como é possível que o senhor não tenha realizado grandes feitos? Com toda a força que possui, o senhor poderia ter chegado a qualquer lugar. Desprovido de consciência ou instinto moral, poderia ter dominado o mundo e o esmagado entre os dedos. No entanto, aqui está o senhor, no ápice da vida, no ponto em que se inauguram a derrocada e a morte, levando uma existência sórdida e obscura, caçando animais marinhos para satisfazer a vaidade e o gosto decorativo das mulheres, chafurdando na mesquinharia, para usar um termo seu, que pode ser qualquer coisa, menos esplêndida. Por que não aproveitou essa força prodigiosa? Não havia nada capaz de detê-lo. O que deu errado? O senhor não tinha ambição? Caiu em tentação? O que aconteceu? O que aconteceu?
Ele ergueu os olhos para mim no início de meu arroubo e me acompanhou com um olhar complacente até que eu terminasse. Fiquei parado na sua frente, sem fôlego e desconsolado. Ele aguardou um momento, como se pensasse por onde começar, e então disse:
Hump, conhece a parábola do semeador que saiu para semear? Talvez lembre que algumas sementes caíram em solo pedregoso, onde não havia muita terra, e brotaram rápido porque a terra não era funda. Quando o sol nasceu elas foram chamuscadas e depois feneceram porque não tinham fincado raízes. E algumas caíram no meio de espinheiros e foram estranguladas pelos espinhos.
Bom, e daí?
Bom? — ele redarguiu com certa petulância. — Não foi nada bom. Eu era uma dessas sementes.
Ele abaixou a cabeça diante da escala e continuou copiando. Terminei meu trabalho e estava abrindo a porta para sair quando ele se dirigiu novamente a mim.
Hump, se você der uma olhada na costa oeste do mapa da Noruega, vai ver uma reentrância chamada Fiorde Romsdal. Nasci a cento e cinquenta quilômetros daquele pedaço de litoral. Mas não sou norueguês de origem. Sou dinamarquês. Meu pai e minha mãe eram dinamarqueses, e eu nunca soube como foram parar naquele ponto perdido da costa oeste. Nunca me disseram. Fora isso, não há nada de misterioso. Eram pessoas pobres e iletradas. Vieram de gerações de gente pobre e iletrada. Trabalhadores do mar que semearam os filhos nas ondas seguindo costumes que vinham desde o princípio dos tempos. Não há nada mais a dizer.
Há sim — discordei. — A meu ver, continua obscuro.
Do que mais posso falar? — ele perguntou com renovada hostilidade. — Das privações na vida de uma criança? De comer só peixe e ter uma vida dura? De sair com os barcos desde que aprendi a engatinhar? Dos meus irmãos, que partiram um a um para mares profundos e nunca mais voltaram? De quando eu próprio, aos dez anos, sem saber ler nem escrever, fui camaroteiro em navios da costa de meu país de origem? Da má comida e dos maus-tratos, dos chutes e safanões que eram a mesma coisa que almoço e cama e valiam mais que palavras, e de quando o medo, o ódio e a dor eram as únicas experiências da alma? Não faço questão nenhuma de lembrar. Mesmo agora, pensando nisso, meu cérebro é invadido pela loucura. Quando me tornei homem feito, só não voltei para matar os capitães de certos barcos costeiros porque a rede de minha vida estava lançada em outras águas. Cheguei a voltar, não faz muito tempo, mas infelizmente os capitães estavam todos mortos, com a exceção de um deles, que tinha sido imediato nos velhos tempos, capitão quando o conheci, e desde que o reencontrei está aleijado para o resto da vida.
Mas você leu Spencer e Darwin sem nunca ter pisado numa escola. Como aprendeu a ler e a escrever?
Na marinha mercante inglesa. Camaroteiro aos doze, grumete aos catorze, marinheiro aos dezesseis, marinheiro de primeira classe aos dezessete, e então manda chuva do castelo de proa, ambição infinita e solidão infinita, sem ajuda ou apoio, e fiz tudo por conta própria, navegação, matemática, ciência, literatura e coisa e tal. E para que serviu tudo isso? Capitão e dono de navio no ápice de minha vida, como você diz, inaugurando minha derrocada e minha morte. Irrisório, não é mesmo? E quando o sol nasceu fui chamuscado. Como não finquei raízes, feneci.
Mas a história fala de escravos que fundaram impérios — contestei.
E a história fala das oportunidades que surgiram para os escravos que fundaram impérios — ele respondeu com amargura. — O homem não faz a oportunidade. Tudo que os grandes homens fizeram foi reconhecer a oportunidade quando ela apareceu diante deles. O corso a reconheceu. Sonhei alto como o corso. Devia ter reconhecido minha oportunidade, mas ela nunca apareceu. Os espinhos me estrangularam. E Hump, já posso dizer que você sabe mais a meu respeito que qualquer um, exceto meu irmão.
E o que faz ele? Onde está?
É capitão do vapor Macedonia, de caça à foca — ele respondeu. — Vamos encontrá-lo, provavelmente, na costa japonesa. Os homens o chamam de “Death” Larsen.
Death Larsen! — gritei sem querer. — Ele é como você?
Longe disso. É um animal desprovido de cabeça. Tem toda a minha, a minha…
Brutalidade — sugeri.
Sim, obrigado pelo termo. Tem toda a minha brutalidade, mas mal sabe ler e escrever.
E ele nunca filosofou sobre a vida — acrescentei.
Não — respondeu Wolf Larsen, com um indescritível ar de tristeza. — E ele é mais feliz assim, deixando a vida em paz. Está ocupado demais vivendo a vida para pensar nela. O meu erro foi ter um dia aberto um livro.

Jack London, in O lobo do Mar

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