Prezado
senhor X,
Encontrei
uma crítica sua sobre um livro A cidade sitiada, só Deus
sabe de quando, pois o recorte não tem data. Sua crítica é aguda e
bem-feita. O senhor disse tantas coisas verdadeiras e bem ditas e que
encontraram eco em mim – que por muito tempo não me ocorreu
acrescentar a elas nem a mim mesma outras verdades também do mesmo
modo importantes. Acontece que essas outras verdades o senhor tem ou
não tem culpa de não as conhecer. Sei que o leitor comum só pode
tomar conhecimento do que está realizado, do que está evidente. O
que me espanta – e isto certamente vem contra mim – é que a um
crítico escapem os motivos maiores de meu livro. Será que isso quer
dizer que não consegui erguer até à tona as intenções do livro?
Ou os olhos do crítico foram nublados por outros motivos, que não
meus? Falam, ou melhor, antigamente falavam, tanto em minhas
“palavras”, em minhas “frases”. Como se elas fossem verbais.
No entanto nenhuma, mas nenhuma mesma, das palavras do livro foi –
jogo. Cada uma delas quis essencialmente dizer alguma coisa. Continuo
a considerar minhas palavras como sendo nuas. Quanto à “intenção”
do livro, eu não acreditava que ela se perdesse, aos olhos de um
crítico, através do desenvolvimento da narrativa. Continuo sentindo
essa “intenção” atravessando todas as páginas, num fio talvez
frágil como eu quis, mas permanente e até o fim. Creio que todos os
problemas de Lucrécia Neves estão condicionados a esse fio. O que é
que eu quis dizer através de Lucrécia – personagem sem as armas
da inteligência, que aspira, no entanto, a essa espécie de
integridade espiritual de um cavalo, que não “reparte” o que vê,
que não tem uma “visão vocabular” ou mental das coisas, que não
sente a necessidade de completar a impressão com a expressão –
cavalo em que há o milagre de a impressão ser total – tal real
– que nele a impressão já é a expressão. Pensei tanto ter
sugerido que a história verdadeira de Lucrécia Neves era
independente de sua história particular. A luta de alcançar a
realidade – eis o principal nessa criatura que tenta, de todos os
modos, aderir ao que existe por meio de uma visão total das coisas.
Pretendi deixar dito também de como a visão – de como o modo de
ver, o ponto de vista – altera a realidade, construindo-a. Uma casa
não é construída apenas com pedras, cimento etc. O modo de olhar
de um homem também a constrói. O modo de olhar dá o aspecto à
realidade. Quando digo que Lucrécia Neves constrói a cidade de S.
Geraldo e dá-lhe uma tradição, isto é de algum modo claro para
mim. Quando digo que, nessa época de cidade nascente, cada olhar
fazia emergir novas extensões, novas realidades – isso é tão
claro para mim. Tradição, passado de cultura – que é isso senão
um modo de ver que se transmite até nós?
Pensei
ter dado a Lucrécia Neves apenas o papel de “uma das pessoas”
que construíram a cidade, deixando-lhe o mínimo de individualidade
necessária para que um ser seja ele mesmo. Os problemas próprios de
Lucrécia Neves, como o senhor diz, me parecem apenas a terra
necessária para essa construção coletiva. Parece-me tão claro.
Uma das mais intensas aspirações do espírito é a de dominar pelo
espírito a realidade exterior. Lucrécia não o consegue – então
“adere” a essa realidade, toma como vida sua a vida mais ampla do
mundo.
Não
se torna evidente para mim que todos esses movimentos íntimos do
livro, e mais outros que o completam – foram submergidos pelo que o
senhor chama de “magia da frase”. Desde o primeiro livro, aliás,
fala-se nas minhas “frases”. Não tenha o senhor dúvida, no
entanto, de que desejei – e consegui, por Deus – qualquer coisa
através delas, e não a elas mesmas.
Chamar
de “verbalismo” uma vontade dolorosa de aproximar o mais possível
as palavras do sentimento – eis o que me espanta. E o que me revela
a distância possível que há entre o que se dá e o que se
recebe... Mas que eu dei e que foi recebido, sei. San Tiago Dantas,
quando leu pela primeira vez o livro, assustou-se: disse-me que eu
havia “caído”. Depois, numa noite de insônia, resolveu relê-lo.
E disse-me com espanto: mas este é o seu melhor livro. Não era, mas
valeu pela compreensão profunda que ele teve de Lucrécia Neves e
dos cavalos de S. Geraldo. Não, o senhor não fez o “enterro” do
livro: o senhor também o “construiu”. Com perdão da palavra,
como um dos cavalos de S. Geraldo.
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
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