segunda-feira, 8 de agosto de 2022

Maya com catapora

É difícil encontrar um homem bom (1953) | Flannery O’Connor

Viagem de família dá errado. É o preferido da Amy. (Ela parece tão meiga na superfície, não?) Amy e eu não costumamos ter o mesmo gosto, mas desse eu gosto.
Quando ela me contou que era seu preferido, pensei em coisas estranhas e maravilhosas sobre sua pessoa, coisas que não tinha imaginado, lugares escuros que posso querer visitar.
As pessoas contam mentiras chatas sobre política, Deus e amor. Você descobre tudo que precisa saber sobre uma pessoa com a resposta desta pergunta: Qual é o seu livro preferido?
A.J.F.

Na segunda semana de agosto, pouco antes de Maya começar o jardim de infância, ela começa a usar óculos (aros redondos e vermelhos) e pega catapora (bolinhas redondas e vermelhas). A.J. amaldiçoa a mãe que falou que a segunda vacina de catapora era opcional, porque essa doença é uma desgraça. Maya está miserável, e A.J. fica miserável porque ela está miserável. As marcas povoam seu rosto, e o ar-condicionado quebra, e ninguém consegue dormir na casa. A.J. traz toalhinhas frias para ela e tira a pele de gomos de tangerina e coloca meias nas mãos dela e fica de guarda ao lado da cama.
Terceiro dia, quatro da manhã, Maya pega no sono. A.J. está exausto, mas inquieto. Ele pediu a uma atendente da loja que pegasse umas provas no porão. Infelizmente, a atendente é nova, e pegou livros da pilha RECICLAR, e não da pilha LER. A.J. não quer deixar Maya sozinha então decide ler uma das provas rejeitadas. No topo da pilha, uma fantasia juvenil em que o personagem principal está morto. Eca. Duas das coisas de que menos gosta (narradores post mortem e juvenis) em um livro. Joga a carcaça de papel de lado. O segundo na pilha são as memórias de um senhor de oitenta anos, um solteirão, que foi jornalista científico para vários jornais do meio-oeste dos EUA e que casou aos setenta e oito anos. A esposa morreu dois anos depois do casamento, aos oitenta e três. Desabrochar tardio, de Leon Friedman. A.J. parece se lembrar do livro, mas não sabe por quê. Ele abre e um cartão cai: AMELIA LOMAN, PTERODACTYL BOOKS. Sim, lembrou.
Claro, ele encontrou Amelia Loman nos anos seguintes àquele desajeitado primeiro encontro. Trocaram um punhado de e-mails cordiais, e ela vem três vezes ao ano reportar os melhores prospectos da Pterodactyl. Depois de passar mais ou menos umas dez tardes com ela, chegou recentemente à conclusão de que ela é boa no que faz. Conhece bem sua lista e as principais tendências literárias. Sempre bem-humorada, mas sem forçar a barra. É gentil com a Maya, sempre se lembra de trazer um livro da linha infantil da Pterodactyl pra menina e nunca a menospreza. Acima de tudo, Amelia Loman é profissional e nunca menciona o mau comportamento de A.J. quando se conheceram. Nossa, ele foi terrível com ela. Como penitência, decide dar uma chance ao Desabrochar tardio, embora ainda não seja nem um pouco seu tipo.
Tenho oitenta e um anos e, estatisticamente falando, deveria ter morrido 4,7 anos atrás”, o livro começa.
Às cinco da manhã, A.J. fecha o livro e lhe dá um tapinha.
Maya acorda, se sentindo melhor. “Por que tá chorando?”
Estava lendo”, responde A.J.

Ela não reconhece o número, mas atende no primeiro toque.
Alô, Amelia? É o A.J. Fikry da Island. Não achei que fosse atender.”
É verdade”, ela diz rindo. “Sou a última pessoa no mundo que ainda atende o telefone.”
Sim, acho que é.”
A Igreja católica quer me santificar.”
A santa Amelia, que atendeu o telefone.”
A.J. nunca ligou antes. “Ainda estamos combinados pra daqui quinze dias ou precisa cancelar?”, Amelia pergunta.
Ah, não, não é isso. Só queria deixar uma mensagem, na verdade.”
Amelia fala monotamente: “Olá, deixe seu recado após o sinal. Bip”.
Hum.”
Bip”, Amelia repete. “Vai, deixa o seu recado.”
Hum, oi, Amelia. Aqui é o A.J. Fikry. Acabei de ler um livro que você me recomendou…”
Ah, é? Qual?”
Que estranho. A caixa postal parece estar falando comigo. É um de muitos anos atrás. Desabrochar tardio, de Leon Friedman.”
Não brinca comigo, A.J. Esse era meu favorito absoluto de quatro listas de inverno atrás. Ninguém queria ler. Eu amei. Ainda amo! Mas eu sou a rainha das causas perdidas.”
Acho que era a capa”, A.J. diz sem saber direito o que falar.
Péssima capa. Pés de gente velha, flores”, concorda Amelia. “Como se alguém quisesse pensar em pés enrugados, ainda mais comprar um livro com isso. A capa da brochura também não ajudou — preto e branco, mais flores. Mas as capas sempre são os enteados ruivos do mercado editorial. Colocamos a culpa de tudo nelas.”
Não sei se lembra, mas me deu Desabrochar tardio quando nos conhecemos”, A.J. diz.
Amelia faz um pausa. “É? É, faz sentido. Quando comecei na Pterodactyl.”
Bem, você sabe, memórias literárias não fazem meu estilo, mas essa é espetacular, à sua maneirazinha. Sábia e…” Ele se sente nu ao falar de coisas que realmente ama.
E…”
Escolha exata de palavras colocadas no lugar exato. Esse é o maior elogio que posso dar. Só estou arrependido de ter demorado tanto para ler.”
Sei bem como é. Por que resolveu ler agora?”
Minha filhinha estava doente, então…”
Ah, coitada da Maya! Espero que não seja nada grave!”
Só catapora. Fiquei acordado a noite toda com ela, e era o livro mais próximo.”
Que bom que leu”, diz Amelia. “Implorei para que todo mundo que eu conheço lesse, e ninguém meu ouviu, só minha mãe, e mesmo ela foi difícil convencer.”
Às vezes os livros só nos encontram no momento certo.”
Isso não serve de consolo para o sr. Friedman”, acrescenta Amelia.
Bom, eu vou encomendar uma caixa da brochura também lamentavelmente encapada. E, no verão, quando todos os turistas estiverem aqui, talvez possamos chamar o sr. Friedman para um evento.”
Se ele estiver vivo até lá”, diz Amelia.
Ele está doente?”, pergunta A.J.
Não, mas ele tem, tipo, noventa anos!”
A.J. ri. “Bem, Amelia, vejo você daqui a quinze dias, então.”
Talvez na próxima você me ouça quando eu disser que é ‘o melhor livro da lista de inverno’!”
Provavelmente não. Sou velho, tenho minhas manias, do contra.”
Não é tão velho”, ela diz.
Se comparado com o sr. Friedman, acho que não.” A.J. dá uma tossidinha. “Quando estiver aqui, poderíamos sair pra jantar ou algo do tipo.”
É normal representantes e livreiros repartirem o pão, mas Amelia detecta certo tom na voz de A.J. Ela esclarece: “Podemos ver a lista durante o jantar”.
Sim, claro”, A.J. responde rápido demais. “É uma viagem tão longa até Alice. Vai estar com fome. Fui mal-educado por não ter oferecido das outras vezes.”
Vamos almoçar então. Preciso pegar a última balsa para Hyannis.”

A.J. decide levar Amelia ao Pequod’s, o segundo melhor restaurante de frutos do mar em Alice Island. El Corazon, o melhor, não abre para almoço, e mesmo se abrisse teria parecido romântico demais para o que é, apenas uma reunião de negócios.
A.J. chega primeiro, o que lhe proporciona tempo para se arrepender da escolha. Ele não ia ao Pequod’s desde que teve a Maya e acha a decoração vergonhosa, pra turista. A elegante toalha de linho branco não distrai dos arpões, redes e casacos de chuva pendurados nas paredes, ou do capitão, entalhado em um tronco, que dá as boas-vindas com um balde de balas de caramelo salgado de cortesia. Uma baleia de fibra de vidro com minúsculos olhos tristes está postada no teto. A.J. sente o julgamento da baleia: Devia ter escolhido o El Corazon, camarada.
Amelia está cinco minutos atrasada. “Pequod, como no Moby Dick”, ela comenta. Está usando um vestido que parece feito com uma toalha de mesa de crochê por cima de uma combinação rosa vintage. Seu cabelo loiro e encaracolado está enfeitado com uma margarida artificial e ela calça galochas, apesar do dia ensolarado. A.J. pensa que as galochas a deixam parecida com um escoteiro, em alerta e preparado para o desastre.
Gosta de Moby Dick?”, ele pergunta.
Odeio”, ela responde. “E não digo isso sobre muitas coisas. Os professores obrigam a leitura, e os pais ficam felizes que os filhos estão lendo algo de ‘qualidade’. Mas é forçando as crianças a ler livros assim que faz com que pensem que odeiam ler.”
E não quis cancelar quando viu o nome do restaurante?”
Ah, eu pensei nisso”, ela diz com alegria na voz. “Mas então avisei a mim mesma que é o nome do restaurante e provavelmente não implica na qualidade da comida, não muito. E eu li umas resenhas na internet, parecia delicioso.”
Não confiou em mim?”
Eu gosto de pensar sobre o que vou comer antes de ir ao lugar. Eu gosto de”, ela estica a palavra, “an-te-ci-par”. Abre o menu. “Eles têm vários drinques com nomes de personagens.” Vira a página. “Enfim, se eu não quisesse comer aqui, teria inventado alguma alergia a frutos do mar.”
Alergia fictícia. Que feio da sua parte.”
Agora não vou poder usar esse truque com você.”
O garçom está vestido com uma camisa branca com babados em conflito com seus óculos pretos e cabelo espetado. O look é pirata hipster. “Ahoy, marinheiros”, o garçom fala sem empolgação. “Querem provar um coquetel temático?”
Prefiro os drinques tradicionais, mas quem resiste a um coquetel temático?”, ela pergunta. “Um Queequeg, por favor.” Ela pega a mão do garçom. “Espera. É bom?”
Hum”, diz o garçom. “Os turistas parecem gostar.”
Bom, se os turistas gostam”, ela diz.
Hum, só pra conferir, você quer dizer que vai querer ou não?”
Com certeza, quero”, diz Amelia. “Venha o que vier.” Ela sorri para o garçom. “Não vou colocar a culpa em você se for péssimo.”
A Pterodactyl”, ele repete.
Ela passa pela lista, pulando sem dó aqueles de que ele não vai gostar, enfatizando as apostas da editora e usando os adjetivos mais sofisticados para os preferidos. Com alguns clientes, menciona quando tem frases na quarta capa recomendando o livro, aqueles elogios hiperbólicos feitos por autores consagrados. A.J. não é um desses clientes. Na segunda ou terceira reunião, ele se referiu a esses textos como “diamantes de sangue do mercado editorial”. Ela o conhece melhor agora, e nem é preciso dizer que o processo ficou menos doloroso. Ele confia mais nela, é o que ela pensa, ou talvez a paternidade o tenha deixado mais mole. (É prudente não dizer isso em voz alta.) A.J. promete ler vários exemplares.
Em menos de quatro anos, espero”, diz Amelia.
Farei o meu melhor para ler em três.” Faz uma pausa. “Vamos pedir a sobremesa. Deve ter uma baleia split ou coisa do tipo.
Amelia geme. “Que trocadilho péssimo.”
Se não se importa com a pergunta: por que o Desabrochar tardio era seu livro preferido daquela lista? Você é jovem…”
Não tão jovem. Tenho trinta e cinco.”
Ainda é jovem”, diz A.J. “O que eu quero dizer é que não deve ter feito muito do que o autor descreve. Olho pra você e, tendo lido o livro, imagino o que fez você gostar.”
Ora, ora, sr. Fikry, essa pergunta é muito pessoal.” Dá um gole do segundo Queequeg. “O principal motivo foi a qualidade da escrita, claro.”
Claro. Mas não é o suficiente.”
Digamos que eu já tinha ido a muitos, muitos encontros ruins quando o livro chegou à minha mesa. Sou romântica, mas às vezes esses tempos em que vivemos não me parecem muito românticos. Desabrochar tardio é um livro sobre a possibilidade de encontrar um grande amor em qualquer idade. Clichê, eu sei.”
A.J. assente.
E você? Por que gostou?”, Amelia pergunta.
Qualidade da prosa, blá-blá-blá.”
Achei que essa resposta era proibida!”
Você não quer ouvir minhas histórias tristes, quer?”
Claro que quero. Adoro histórias tristes.”
[…]

Gabrielle Zevin, in A vida do livreiro A. J. Fikry

Nenhum comentário:

Postar um comentário