segunda-feira, 8 de agosto de 2022

As primeiras quinze vidas de Harry August | Capítulo 1


O segundo cataclismo começou na minha décima primeira vida, em 1996. Eu estava morrendo a minha morte de sempre, indo embora aos poucos, entorpecido numa acolhedora névoa de morfina, que ela interrompeu como um cubo de gelo se arrastando pela minha espinha dorsal.
Ela estava com 7 anos, eu, com 78. Seu cabelo era loiro e liso, e estava preso num longo rabo de cavalo que descia pelas costas; meu cabelo, ou o que restava dele, era tão branco que brilhava. Eu usava uma bata do hospital feita para uma humilhação esterilizada; ela, uniforme escolar azul de um tom vivo e chapéu de feltro. Ela se empoleirou na lateral da minha cama, com os pés suspensos balançando, espreitando meus olhos. Então, olhou para o monitor cardíaco conectado ao meu peito, comprovou que o alarme estava desconectado, sentiu meu pulso e disse:
Quase perdi você, doutor August.
Seu alemão tinha um forte sotaque de Berlim, mas ela poderia ter conversado comigo em qualquer idioma do mundo, que ainda seria apresentável. Coçou a parte de trás da perna esquerda, onde as meias três-quartos pinicavam por causa da chuva que ela havia apanhado lá fora. Enquanto coçava, disse:
Eu preciso enviar uma mensagem de volta no tempo. Se é que se pode dizer que o tempo importa neste caso. Já que convenientemente você está morrendo, peço que transmita essa mensagem aos Clubes de sua época, assim como ela foi passada para mim.
Tentei falar, mas as palavras se amontoaram na minha língua e nada disse.
O mundo está acabando — disse ela. — A mensagem tem sido transmitida de crianças para adultos, crianças para adultos através das gerações, vinda de mil anos no futuro. O mundo está acabando, e não podemos impedir. Então, agora é com você.
Descobri que naquele momento o tailandês era o único idioma que saía da minha boca de forma coerente, e as únicas palavras que consegui formular naquele momento foram:
Por quê?
Devo deixar claro que não perguntei por que o mundo estava acabando.
Por que isso teria importância?
Ela sorriu e entendeu o que eu queria dizer sem que eu precisasse explicar. Inclinou-se e murmurou ao pé do meu ouvido:
O mundo está acabando, como sempre. Mas o fim está chegando cada vez mais rápido.
Aquele foi o começo do fim.

Claire North, in As primeiras quinze vidas de Harry August

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