...
nessas tão minhas lembranças eu
mesmo
desapareci.
Diurno.
Está-se
ouvindo. Escura a voz, imesclada, amolecida; modula-se, porém,
vibrando com insólitos harmônicos, no ele falar naquilo. Todo o
mundo tem a incerteza do que afirma. Drijimiro, não; o pouco que
pude entender-lhe, dos retalhos do verbo. Nada diria, hermético
feito um coco, se o fundo da vida não o surpreendesse, a só saudade
atacando-o, não perdido o siso.
Teve
recurso a mim. Contou, que me emocionou. — “Lá, nas
campinas...” — cada palavra tatala como uma bandeira branca —
comunicado o tom — o narrador imaginário. Drijimiro tudo ignorava
de sua infância; mas recordava-a, demais. Ele era um caso achado.
Vinha-lhe
a lembrança — do último íntimo, o mim de fundo — desmisturado
milagre. Só lugares. Largo rasgado um quintal, o chão amarelo de
oca, olhos-d’água jorrando de barrancos. A casa, depois de
descida, em fojo de árvores. Tudo o orvalho: faísca-se, campo a
fora, nos pendões dos capins passarinhos penduricam e se
embalançam... De pessoas, mãe ou pai, não tirava memória. Deles
teria havido o amor, capaz de consumir vozes e rostos — como a
felicidade. Drijimiro voltava-se — para o rio de ouvidos tapados.
Nenhum dia vale, se seguinte. Que jeito recobrar aquilo, o que ele
pretendia mais que tudo? Num ninho, nunca faz frio.
Frase
única ficara-lhe, de no nenhum lugar antigamente: — “Lá, nas
campinas...” — desinformada, inconsoante, adsurda.
Esqueceu-a, por fim. Calava reino perturbador; viver é obrigação
sempre imediata.
Estava
agora bem de vida — como o voo da mosca que caminhou até à beira
da mesa. Iô Nhô, o rico e chefe, estimava-o. Seguia-o o Rixío,
entendido e provador de cachaças. Dona Divída debruçava-se à
janela, redondos os peitos, os perfumes instintivos. Drijimiro
passava, debaixo de chapéu, gementes as botinas. Aparecia, na clara
ponta da rua, Dona Tavica, jasmim em ramalhete, tantas crianças a
rodeavam.
Antes
ele buscara, orfandante, por todo canto e parte. — “Lá, nas
campinas?...” — o que soubesse acaso.
Tinha
ninguém para lhe responder. De menino, passara por incertas famílias
e mãos; o que era comum, como quando vêm esses pobres, migrantes:
davam às vezes os filhos, vendiam filhas pequenas.
Drijimiro
andara — de tangerino, positivo, ajudador de arrieiro — às
vastas terras e lugares. Nada encontrava, a não ser o real: coisas
que vacilam, por utopiedade. E esta vida, nunca conseguida. Ia
ficando esperto e prático.
Uma
campina — plano, nu campo, espaço — podendo ser no distante Rio
Verde Pequeno, ou todo o contrário, abaixo do Abae-té, e estando
nem onde nem longe, na infinição, a serra de atrás da serra. Via
as moças enfeitantes — olhos e rir, Divída, matéria bonita — e
precisava, tornava a partir, apertando-o o nó de recordações. Só
achar o sítio, além, durado na imaginação.
No
sertão, entanto, campinas eram os “alegres”: as
assentadas nos morros, esses altos claros, limpos, ondeados em
encostas. Viu — pelos olhos perdido por mil — Tavica, alva tão
diferente, para simplificação do coração. Gostou dela, como de
madrugada gêia.
Tácito,
mais, entrecuidando. Disse-se-lhe: que, se num lugar tal alguém
aquilo falara, então não seriam lá as campinas, mas -em ponto
afastado diverso.
Já
afadigado Drijimiro lutava, constando que velhaco. Vendia, recriava,
comprava bezerros. Iô Nhô fizera-o seu sócio. Vezava-se,
afortunado falsamente, inconsiderava, entre a necessidade e a ilusão,
inadiavelmente afetuoso.
Dizendo-lhe
o Rixío: que com esse nome de Campinas houvesse, em São
Paulo e Goiás, arraial antigo e célebre cidade. Ele não procurava
mais; guardava paz, sossego insano, com caráter de cordialidade.
Mas
achava, já sem sair do lugar, pois onde, pois como, do de nas
viagens aprendido, ou o que tinha em si, dia com sobras de aurora.
Notava: cada pedrinha de areia um redarguir reluzente, até os voos
dos passarinhos eram atos. O ipê, meigo. O sol-poente cor de cobre —
no tempo das queimadas — a lua verde e esverdeadas as estrelas. Ou
como se combinam inesquecivelmente os cheiros de goiaba madura e suor
fresco de cavalo.
Dom,
porém, que foi perdendo. Diziam-no silencioso mentiroso. Ou que
lesava os outros — voto de mentes vulgares.
Soltavam-se
foguetes: Iô Nhô fazia anos e bodas-de-ouro. Drijimiro dele
adquiriu também o alambique, barris, queria respeito e dinheiro,
destilar aguardente; servia-o o Rixío, deixado de serenatas. Diante
dali passava Dona Tavica: entre a horda de filhos, ela ralhava, amava
e parcelava-se.
Seguidamente
via-a, sentindo-se influído por aquela alvura. Calava, andava, mais
bezerros negociava. E em dia o Rixío, ardido, deu a cor do
calcanhar, saíu-se redondo pelo mundo. Tempo de fatos. Iô Nhô se
entrevara, por ataques de estupor.
Vinham
todos agora à tenda de aguardenteiro, queriam-se perto de Drijimiro,
pelo tonto conselho e quase consolo, imaginavam suas trapaças. Tudo
temessem perder, achavam-lhe graça. — “É burro...” —
entendiam, se quietavam. Dona Divída, sacudida de bela, chamava-o,
temia o envelhecer, queria que o marido não bebesse, homem de
bigode.
Iô
Nhô morreu. Outro dezembro e o Rixío tornou, quebrado e rendido,
neste mundo volteador. Vinha, para passar. Só rever Drijimiro,
pedir-lhe perguntado o segredo: — “Lá nas campinas...”
— mas que Drijimiro não sabia mais de cor. O Rixío morreu —
ficou fiel, frio, fácil. O mundo se repete mal é porque há um
imperceptível avanço.
E
ia Drijimiro, rugoso, sob chapéu, sem regalo nenhum, a ceder-se ao
fado. Dona Divída aparecia, sua pessoa de filha de Deus, tão
vistosa. E viu Dona Tavica, a quem calado entregou seu coração,
formosa desbotada. Doravante... Ousava estar inteiramente triste.
Surgindo-lhe,
ei, vem, de repente, a figura da Sobrinha do Padre: parda magra,
releixa para segar, feia de sorte. Sós frios olhos, árdua agravada,
negra máscara de ossos, gritou, apontou-o, pôde com ele.
Sem
crer, Drijimiro se estouvou, perdido o tino, na praça
destontando-se, corria, trancou-se em casa.
Aí
veio o Padre. Atravessava a rua, ao sol, a batina ainda mais preta,
se aproximava.
Drijimiro
pelos fundos do quintal refugiu, tremendo soube de sua respiração,
oculto em esconso.
Mas
logo não sorriu, transparentemente, por firmitude e inquebranto.
Falou, o que guardado sempre sem saber lhe ocupara o peito,
rebentado: luz, o campo, pássaros, a casa entre bastas folhagens,
amarelo o quintal da voçoroca, com miriquilhos borbulhando nos
barrancos... Tudo e mais, trabalhado completado, agora, tanto —
revalor — como o que raia pela indescrição: a água azul das
lavadeiras, lagoas que refletem os picos dos montes, as árvores e os
pedidores de esmola.
Tudo
era esquecimento, menos o coração. — “Lá, nas campinas!...”
— um morro de todo limite. O sol da manhã sendo o mesmo da tarde.
Então,
ao narrador foge o fio. Toda estória pode resumir-se nisto: — Era
uma vez uma vez, e nessa vez um homem. Súbito, sem sofrer, diz,
afirma: — “Lá...” Mas não acho as palavras.
Guimarães Rosa, in Tutameia
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