Ladislau
trazia dos gerais do Saririnhém a boiada, vindo por uma região de
gente escura e muitos brejos, por enquanto. Em ponto pararam, tarde
segunda, solitários no Provedio, onde havia pasto fechado. Eram duas
e meia centenas de bois, no meio os burros e mulas — montaria para
quando subissem às serras.
Onze
homens tangiam-nos, entre esses o vaqueiro Rigriz, célebre, e o
Piôrra, filho de longe, do Norte, cegado de um olho. Dormiram
derrubadamente, ao relento das estrelas. Ladislau tinha cachorro
grande, amarelo, o Eu-Meu, que acordava-o a horas certas, sem latir
nem rosnar, só com a presença. O orvalho de junho molhava miúdo,
às friagens. Levantavam-se, todos tantos, com lepidão. E: um dos da
comitiva fora morto, a metros do arrancho, no passo da madrugada!
Se
achou: o Quio, endurecido o corpo, de borco — sangue no capim em
roda — esfaqueado pelas costas. Ladislau quis não ver, tinha
quizília àquilo. Rezou-lhe por alma, mesmo a cavalo, antes de
contar o gado.
Era
o assassinado irmão de Tiotinho e primo do Queleno, ásperos os dois
lá, olhares avermelhados. Liocádio, o Piôrra, Joãozão e Amazono,
revezados, abriam cova, com demora, por falta de boa ferramenta.
Zèquiabo cozinheiro coou mais café; e tomava-se uca. Eu-Meu latia
para o pessoal e para a estrada. Antônio Bá fincou a cruz, de dois
paus de sipipira. O quanto, o silêncio.
Sol
alto, se saiu, banda do Rio Março, aos campos do Sabugo. Não
olhavam para trás os da culatra, Rigriz, Zègeraldo e Seiscêncio,
porque isso gera desgraça. Ladislau tirava um pensar — por modo de
obrigação. Se alguém o certo soubesse, não dizia; ou o muito que
diziam não se provava.
Daqueles,
qual, então, tinha matado o falecido? Só podia perguntar ao
Sabiá-preto, seu cavalo.
Já
em quase anoitecer ao Outro-Buritizinho se chegou — o rio avistado.
Sitiaram o gado entre duas voltas dele, por encerro, tinham de
vigiar. Ladislau quisesse prosa com o vaqueiro Rigriz: sentado
esperou, beira de fogo, o Eu-Meu ao pé. Rigriz em breve veio, como é
dos velhos. Sopuxou: — “Nem o cão latiu, na ocasião...”
— e verdade. Do Rigriz ao são respeito se podia duvidar, homem de
perita sensatez, campeiro tão forçoso? Este, de lado ficava.
Ladislau desviado versou: — “Será, o Seo Drães adquire a
Gralha?” — meio meditado.
Daí
viu sozinho o Amazono, por exemplo, que raça de outro que fosse.
Ladislau a ele propôs: — “Será, a Fazenda da Gralha, o Seo
Drães vai mesmo comprar?” — e tocara-lhe antes com um dedo a
mão, feito por descuido. Amazono nem somou: — “É ricaço!”
— ele ripostava. Seu perfil cheio de recortes, quebrado bem o
chapéu adiante, se perfazia Ladislau, descomum e cismoso. Foi a
noite fria demais, estralavam as brasas.
Manhã
seguinte. A vida se ata com barbante? Ladislau indo sorumbava. Matar
não virava traquinagem. Apanhou oito vagens pequenas de jubaí, pôs
na algibeira. Referir caso ao Patrão — raciocinado? Isso era de
sua pertença. Tomava o trato.
Mas,
de Tiotinho e do Queleno, tinha o que achar não: eles, do morto
parentes, em nojo. Na poeirama, jogou fora duas das favas.
Trotinhava
o Eu-Meu, arredio dos bois. Tocava o berrante Antônio Bá, capiau.
Vaqueiro Rigriz, torna, nada falava. O dia era inteiro demasiado.
Deram no Sassafrás, vereda, pouso.
Indagou
então do guia Bá, no enfarinhar o feijão: — “Se a
Gralha...” O outro redondeou: — “É negócio vantajado.”
Ladislau drede distraído cutucou-lhe a mão. Ele espalmou-a: —
“Ezcemas.” Ladislau persistiu: — “Seo Drães...”
— fez de bobo. E — como se saber — o que não se arrazôa nem
se intruge? Eu-Meu esperava a comida, com seriedades.
Prosseguia-se,
dia nublado, sexta-feira, às pequenas léguas. Ladislau emendado
pensava: não ia maldar do Piôrra, correto, caolho, corrigido. Outra
fava jogou, de rejeito; quatro ainda restavam. Os bois em furupa
berravam por passatempo — a boiada que vai para os horizontes. Dar
conta daquilo! Voou, passou, o pica-pau-verde-e-vermelho. Voou um
bendito — preto-amarelo-branco — para árvores altas. — “Seo
Drães...” e o trufe-e-trufe do gado. Joãozão nem sentiu,
quando ele lhe apontou à mão. — “Diz-se que pois...” —
tinha respondido.
Eu-Meu
emagrecia, cada dia: em casa, depois, pegava a engordar. Voou um
gavião-puva. Esbarraram, para pôr acampamento: no Buriti-da-Velha —
vereda — o capim roxo em flor.
Ao
dia sussequente, se via chupado de morcegos o Sabiá-preto, forte
animal. Vagarosos — cruzando campos, neblinas na baixa —
avançavam. Ladislau ia não ter de relatar o dó à viúva, nem a
pai e mãe: só o Tiotinho. Ele bocejou; fez sobrolho.
Nesse
Seiscêncio — botou outra vagem fora, de repente — não se podia
pôr suspeita, o simplório, bom, beócio. E conversou com Liocádio,
em beira de lagoa, na paragem do meio-dia. — “Seo Drães...”
Aquele riu, no lhe bulir na mão: — “Munheca para vara e
laço!” Nenhum tinha o atiço, o arroto de gente maligna. Da
Gralha o geral achavam. E Zègeraldo respondeu: que nas mãos tivesse
ainda calejo, das capinas de janeiro e de dezembro — sem embatuque.
Alcançaram
a Ribeira-das-Gamelas — cabeceira do rio — de tarde, no amolecer
do ar. Tinha na algibeira vagem mais nenhuma. Dormiram cansadamente.
Mais cedo acordaram. Se moviam de arrebol.
Ele,
capataz, ia mesquinhar-se, vinha de tio. Esquecera alguma manha? O
Zèquiabo, cozinheiro! Mas que sem desconversa respondeu: — “A
Gralha é uma fartura...” — e que: em fato, já carecia de
cortar as unhas. Ranchearam no Arredado, rumo-a-rumo com o São
Firmino, lá às serras. Ladislau mudou para a besta Bolacha, o
Sabiá-preto deixado. Pousou-se na Fazenda Santa Arcanja.
Ia-se
pelos altos: ao impossível. Tudo com o cansaço maior parece torto,
sem jeito de remate. — “Seo Drães...” — só falava,
sem precisar, sem sandice ou sestro. Até aqui, no Muricizal, quando
a tarde se pardeava; no ponto onde existiu o sítio de um Jerônimo
Manêta.
Ladislau
tateava as patas do Eu-Meu, com ver que se muito gastadas.
Um
vaqueiro passou, Liocádio, agradou o cão — que latiu ou não
latiu, não se ouviu. Ladislau falou, bateu na mão do outro — era
por repetida vez! — de uso, de esquecido? Aquele, atentado, em
trisco se rebelou, drempente, sacando faca à fura-bucho...
Mas
Ladislau num revira-vaca, no meio do movimento, em fígado lhe
desfechou encostadamente a parabellum de doze balas, boa arma!
Espichado o ferrabruto amassou moita de mentrasto, caiu como vítima.
Rigriz disse, que viu, que piscou: — “Remexam nos dobros
deles, que o assassino ele era, por algum trato ou furto!”
Tal
assim.
Todos
se benzeram.
Saíam,
ao outro dia seguinte, manhã. — “Seo Drães!...” — de
tão acostumado a repetir o nome, aquele, do Patrão, da
Fazenda-do-Vau — e da Gralha, talvez. Ia a boiada, deixalenta.
Ladislau, cheio de vida e viagem, como quando um touro ergue a cabeça
ante o estremecer dos prados, perfeitamente assaz. Só aboiava. Sabia
que nada sabia de si.
Guimarães Rosa, in Tutameia
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