Hei
que ele é.
Do
Irreplegível.
Há
o hipotrélico. O termo é novo, de impesquisada origem e ainda sem
definição que lhe apanhe em todas as pétalas o significado.
Sabe-se, só, que vem do bom português. Para a prática, tome-se
hipotrélico querendo dizer: antipodático, sengraçante
imprizido; ou, talvez, vice-dito: indivíduo pedante, importuno
agudo, falto de respeito para com a opinião alheia. Sob mais que,
tratando-se de palavra inventada, e, como adiante se verá,
embirrando o hipotrélico em não tolerar neologismos, começa ele
por se negar nominalmente a própria existência.
Somos
todos, neste ponto, um tento ou cento hipotrélicos? Salvo o excepto,
um neologismo contunde, confunde, quase ofende. Perspica-nos a
inércia que soneja em cada canto do espírito, e que se refestela
com os bons hábitos estadados. Se é que um não se assuste: saia
todo-o-mundo a empinar vocábulos seus, e aonde é que se vai dar com
a língua tida e herdada? Assenta-nos bem à modéstia achar que o
novo não valerá o velho; ajusta-se à melhor prudência relegar o
progresso no passado.
Sobre
o que, aliás, previu-se um bem decretado conceito: o de que só o
povo tem o direito de se manifestar, neste público particular. Isto
nos aquieta. A gente pensa em democráticas assembleias, comitês,
comícios, para a vivíssima ação de desenvolver o idioma; senão
que o inconsciente coletivo ou o Espírito Santo se exerçam a ditar
a vários populares, a um tempo, as sábias, válidas inspirações.
Haja para. Diz-se-nos também, é certo, que tudo não passa de um
engano de arte, leigo e tredo: que quem inventa palavras é sempre um
indivíduo, elas, como as criaturas, costumando ter um pai só; e que
a comunidade contribui apenas dando-lhes ou fechando-lhes a
circulação. Não importa. Na fecundidade do araque apura-se
vantajosa singeleza, e a sensatez da inocência supera as excelências
do estudo. Pelo que, terá de ser agreste ou inculto o neologista, e
ainda melhor se analfabeto for.
Seja
que, no sem-tempo quotidiano, não nos lembremos das e muitíssimas
que foram fabricadas com intenção — ao modo como Cícero fez
qualidade (“qualitas”), Comte altruísmo, Stendhal
egotismo, Guyau amoral, Bentham internacional,
Turguêniev niilista, Fracástor sífilis, Paracelso
gnomo, Voltaire embaixatriz (“ambassadrice”), Van
Helmont gás, Coelho Neto paredro, Ruy Barbosa
egolatria, Alfredo Taunay necrotério; e
mais e mais e mais, sem desdobrar memória. Palavras em serviço
efetivo, já hoje viradas naturais, com o fácil e jeito e unto de
espontâneas, conforme o longo uso as sovou.
De
acordo, concedemos. Mas, sob cláusula: a de que o termo engenhado
venha tapar um vazio. Nem foi menos assim que o dr. Castro Lopes, a
fim de banir galicismos, e embora se saindo com processo direto e
didático, deixadas fora de conta quaisquer sutilezas psicológicas
ou estéticas, conseguiu pôr em praça pelo menos estes, como ele
mesmo dizia, “produtos da indústria nacional filológica”:
cardápio, convescote, preconício, necrópole, ancenúbio,
nasóculos, lucivéu e lucivelo, fádico, protofonia,
vesperal, posturar, postrídio, postar (no correio) e mamila. E,
donde: palavra nova, só se satisfizer uma precisão, constatada,
incontestada.
Verdade
é que outros também nos objetam que esta maneira de ver reafirma
apenas o estado larval em que ainda nos rojamos, neste pragmático
mundo da necessidade, em que o objetivo prevale o subjetivo, tudo
obedece ao terra-a-terra das relações positivas, e, pois, as coisas
pesam mais do que as pessoas. Por especiosa, porém, rejeitamos a
argumentação. Viver é encargo de pouco proveito e muito
desempenho, não nos dando por ora lazer para nos ocuparmos em
aumentar a riqueza, a beleza, a expressividade da língua. Nem nos
faz falta capturar verbalmente a cinematografia divididíssima dos
fatos ou traduzir aos milésimos os movimentos da alma e do espírito.
A coisa pode ir indo assim mesmo à grossa.
E
fique à conta dos tunantes da gíria e dos rústicos da roça —
que palavrizam autônomos, seja por rigor de mostrar a vivo a vida,
inobstante o escasso pecúlio lexical de que dispõem, seja por gosto
ou capricho de transmitirem com obscuridade coerente suas próprias e
obscuras intuições. São seres sem congruência, pedestres ainda na
lógica e nus de normas. Veja-se o que diz Gustavo Barroso, no “Terra
de Sol”: “‘Subdorada’ era o adjetivo que lhes exprimia a
admiração. Não sei onde o foram encontrar. No sertão há dessas
expressões; nascem ninguém sabe como; vivem eternamente ou
desaparecem um dia sem também se saber como.” Confere. Pode-se lá,
porém, permitir que a palavra nasça do amor da gente, assim, de
broto e jorro: aí a fonte, o miriquilho, o olho-d’água; ou como
uma borboleta sai do bolso da paisagem?
Do
que tal se infere serem os neologismos de um sertanejo desses, do
Ceará ou de Minas Gerais, coisas de desadoro, imanejáveis, senão
perigosas para as santas convenções. Se nem ao menos tão longe,
mas por aqui, no Estado do Rio, nosso amigo Edmundo se surpreendeu
com a resposta, desbarbadamente hermética, de um de seus meeiros, a
quem perguntara como ia o milho: — “Vai de minerol infante.”
— “Como é?” — “Está cobrindo os tocos...” O que já
pode parecer excessiva força de ideias.
Dito
seja, a demais, que o vezo de criar novas palavras invade muitas
vezes o criador, como imperial mania. Um desses poetas, por exemplo,
de inabafável vocação para contraventor do vernáculo, foi o
fazendeiro Chico de Matos, de Dourados; coitado, morreu de
epitelioma. Duas das suas se fizeram, na região: intujuspéctico,
que quase por si se define — com o sentido de pretensioso impostor
e enjoado soturno; e incorubirúbil, que onomatopeicamente
pode parecer o gruziar de um peru ou o propagar-se de golpes com que
se sacoleja a face límpida de uma água, mas que designa apenas quem
é “cheio de dedos”, “cheio de maçada”, “cheio de voltas”,
“cheio de nós pelas costas”, muito susceptível e pontilhoso.
Não são de não se catalogar?
Já
outro, contudo, respeitável, é o caso — enfim — de
“hipotrélico”, motivo e base desta fábula diversa, e que vem do
bom português. O bom português, homem-de-bem e muitíssimo
inteligente, mas que, quando ou quando, neologizava, segundo suas
necessidades íntimas.
Ora,
pois, numa roda, dizia ele, de algum sicrano, terceiro, ausente:
— E
ele é muito hiputrélico...
Ao
que, o indesejável maçante, não se contendo, emitiu o veto:
— Olhe,
meu amigo, essa palavra não existe.
Parou
o bom português, a olhá-lo, seu tanto perplexo:
— Como?!...
Ora... Pois se eu a estou a dizer?
— É.
Mas não existe.
Aí,
o bom português, ainda meio enfigadado, mas no tom já feliz de
descoberta, e apontando para o outro, peremptório:
— O
senhor também é hiputrélico...
E
ficou havendo.
Guimarães Rosa, in Tutameia
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