domingo, 21 de agosto de 2022

Ficção ou não

Estou entrando num campo onde raramente me atrevo a entrar, pois já pertence à crítica. Mas é que me surpreende um pouco a discussão sobre se um romance é ou não romance. No entanto as mesmas pessoas que não o classificam de romance falam de seus personagens, discutem seus motivos, analisam suas soluções como possíveis ou não, aderem ou não aos sentimentos e pensamentos dos personagens. O que é ficção? é, em suma, suponho, a criação de seres e acontecimentos que não existiram realmente mas de tal modo poderiam existir que se tornam vivos. Mas que o livro obedeça a uma determinada forma de romance – sem nenhuma irritação, je m’en fiche. Sei que o romance se faria muito mais romance de concepção clássica se eu o tornasse mais atraente, com a descrição de algumas das coisas que emolduram uma vida, um romance, um personagem etc. Mas exatamente o que não quero é a moldura. Tornar um livro atraente é um truque perfeitamente legítimo. Prefiro, no entanto, escrever com o mínimo de truques. Para minhas leituras prefiro o atraente, pois me cansa menos, exige menos de mim como leitora, pede pouco de mim como participação íntima. Mas para escrever quero prescindir de tudo o que eu puder prescindir: para quem escreve, essa experiência vale a pena.
Por que não ficção, apenas por não contar uma série de fatos constituindo um enredo? Por que não ficção? não é autobiográfico nem é biográfico, e todos os pensamentos e emoções estão ligados a personagens que no livro em questão pensam e se comovem. E se uso esse ou aquele material como elemento de ficção, isto é um problema exclusivamente meu. Admito que desse livro se diga como se diz às vezes de pessoas: “Mas que vida! mal se pode chamar de vida.”
Em romances, onde a trajetória interior do personagem mal é abordada, o romance recebe o nome de social ou de aventuras ou do que quiserem. Que para o outro tipo de romance se dê um outro epíteto, chamando-o de “romance de...”. Enfim, problema apenas de classificação.
Mas é claro que A paixão segundo G. H. é um romance.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

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