Falamos
sobre sorvetes, eu disse que tinha tomado um ótimo, de carambola.
– Não
sei que graça você acha em carambola.
Falamos
sobre carambola, discutimos sobre carambola; passamos a romã e
finalmente a jambo; sim, há o jambo moreno e o jambo cor-de-rosa,
este é muito sem gosto; aliás, a mais bonita de todas as mangas, a
manga-rosa, não tem nem de longe o gosto de uma espada, de uma
carlotinha.
Lembrei
a história contada por um amigo. Mais de uma vez insistira com certa
moça para que fosse ao seu apartamento. Ela não queria ir. Ele um
dia telefonou: “Vem almoçar comigo, mando matar uma galinha, fazer
molho pardo…” achou que a recusa da moça era menos dura. E
insistiu mais: — Vem… tem manga carlotinha…
– Manga
carlotinha? Mentira!
E
a moça foi. Refugaria talvez promessa de casamento, se irritaria com
o presente de jóia, mas como resistir a um homem que tem galinha ao
molho pardo com angu e manga carlotinha, e faz um convite tão
familiar?
Ela
não achou muita graça na história. Aliás não simpatizava com
aquele amigo meu.
Ficamos
um instante em silêncio. Comecei a mexer o gelo dentro do copo com o
dedo.
É
um hábito brasileiro, mas até que não é meu uso; inclusive, para
falar a verdade, acho pouco limpo; entretanto eu mexia com o
indicador o gelo que boiava no uísque, e como seria insuportável
não fazer a pergunta, ergui os olhos e fiz: — Mas, afinal, o que
foi que o médico disse?
E
ela encolheu os ombros. Repetiu algumas palavras do médico,
principalmente uma: Sindroma… teve uma dúvida: — É síndroma ou
sindroma?
Eu
disse francamente que não sabia; apenas tinha a impressão de que a
palavra era feminina; mas também podia ser masculina; era paroxítona
ou átona, mas também podia ser proparoxítona ou esdrúxula; e,
ainda por cima, tanto se podia dizer sindroma como síndrome, e até
mesmo sindromo.
Em
todo o caso — juntei — não era bem uma doença; era um conjunto
de sintomas… eu falava assim não para mostrar sabença, mas para
mostrar incerteza, e ignorância da verdade verdadeira — ou até
uma certa indiferença por essas coisas de palavras.
Confessei-lhe
que há muitas palavras que evito dizer porque nunca estou muito
seguro da maneira de pronunciar. Por outro lado há palavras que a
gente só conhece porque são usadas em palavras cruzadas. Até
existe uma cidade assim, uma cidade de que ninguém se lembraria
jamais se não tivesse apenas duas letras e não fosse terra de
Abraão ou cidade da Caldéia: UR. Se os charadistas do mundo inteiro
formassem uma pátria a capital teria de ser UR. Eu falava essas
bobagens com volubilidade. Ela disse: — Todo mundo, quando tem uma
doença como essa minha, procura se enganar. Eu, não.
Chamei-a
de pessimista, aliás ela sempre fora pessimista.
– Não
é pessimismo não. É…
Senti
que ela ia dizer o nome da doença, e que tudo estaria perdido se ela
pronunciasse aquele nome; seria intolerável.
– Você
sabe muito bem o que é.
Chamei
o garçom, pedi mais um uísque e mais um Alexander’s.
– Sabe
quem eu vi hoje?
Era
ela que mudava de conversa; senti um alívio. E falamos, e falamos…
Eu admirava mais uma vez sua cabeça, os olhos claros, a testa, sua
graça tocante.
Era
insuportável pensar que alguém assim pudesse estar condenada.
Dentro de mim eu sabia, mas não acreditava. Tive a impressão de que
sua cabeça estremecia como uma flor. Um anjo se movera junto de nós,
na penumbra do bar, era o anjo da morte; e a flor estremecera.
– Acho
que o balé russo precisa se renovar…
Ela
achava que não era justo falar em virtuosidades acrobáticas; o que
havia era uma renúncia a todo expressionismo e a toda pantomima, a
beleza do bale puro… E no meio da discussão me chamou de literato;
mas juntou logo um sorriso tão amigo. Eu disse o que talvez já
tivessse dito uma vez: — Foi uma pena você não ter estudado bale.
Pensava
no seu corpo de pernas longas, na linha dura das ancas, nos seios
pequenos, e a revia por um instante, toda casta, nua. Ela me censurou
por beber tão depressa, e de repente: — E esse seu bigode agora
está horrível.
– Por
que você não toma conta de mim, não dirige meus uísques e meus
bigodes?
Ela
riu, e deu uma risada tão alegre como antigamente.
Como
as pessoas costumam dizer, uma risada de cristal. Clara, alegre,
tilintante como o cristal. O cristal, que se parte tão fácil.
Rubem Braga, in 200 crônicas escolhidas
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