terça-feira, 2 de agosto de 2022

Dor de vagabundo


O poeta Victor Valoff não era um poeta muito bom. Tinha fama local, era simpático às senhoras e sustentado pela esposa. Vivia fazendo recitais em livrarias locais, e muitas vezes era ouvido na Estação de Rádio Pública. Lia com uma voz alta e dramática, mas o tom jamais variava. Victor estava sempre no clímax. Acho que era isso que atraía as senhoras. Alguns de seus versos, tomados separadamente, pareciam ter força, mas quando considerados em conjunto a gente via que Victor não estava dizendo nada, só que dizia nada ruidosamente.
Mas Vicki, que como a maioria das senhoras se encantava facilmente com idiotas, insistia em ouvir Valoff recitar. Era uma quente noite de sexta-feira, numa livraria feminista-lésbica-revolucionária. Não se pagava entrada. Valoff lia de graça. E haveria uma exposição de sua arte após o recital. A arte de Valoff era muito moderna. Uma ou duas pinceladas, geralmente em vermelho, e um trecho de um epigrama numa cor contrastante. Inscrevia-se um exemplo de sabedoria, tipo:

Verde céu volta pra mim,
Eu choro cinza, cinzento, cinza, cinzento...

Valoff era inteligente. Sabia que havia duas maneiras de dar a ideia de cinzento.
Fotos de Tim Leary penduradas em volta. Cartazes de IMPEACHMENT PARA REAGAN. Eu não ligava para os cartazes de IMPEACHMENT PARA REAGAN. Valoff levantou-se e dirigiu-se à plataforma, uma meia garrafa de bebida na mão.
Veja – disse Vicki –, veja aquele rosto! Como ele sofreu!
É... – eu disse – e agora quem vai sofrer sou eu.
Valoff tinha um rosto bastante interessante – em comparação com a maioria dos poetas. Mas em comparação com os poetas, quase todo mundo tem.

Victor Valoff começou:

A leste do Suez de meu coração
começa um zumbir zumbir zumbir
escuro ainda, ainda escuro
e de repente o Verão volta pra casa
varando em linha reta como
quarto zagueiro penetra na última jarda
de meu coração!”

Victor gritou o último verso, e ao fazer isso alguém perto de mim disse:
Lindo!
Era uma poeta feminista local que se cansara dos negros e agora trepava com o doberman em seu quarto. Tinha cabelos ruivos em tranças, olhos mortiços, e tocava bandolim quando lia sua obra. Grande parte de sua obra falava alguma coisa sobre as pegadas de um bebê morto na areia. Era casada com um médico que jamais estava por perto (pelo menos tinha o bom senso de não assistir a recitais de poesia). O marido dava-lhe uma boa pensão para sustentar sua poesia e alimentar o doberman.
Valoff continuou:

Docas e patos e derivativo dia
fermentam por trás de minha
testa da maneira mais impiedosa
ó, da maneira mais impiedosa.
Eu cruzo trôpego a luz e a treva...”

Nesse ponto eu tenho de concordar com ele – eu disse a Vicki.
Por favor, cale a boca – ela respondeu.

Com mil pistolas e
mil esperanças
saio à varanda de minha mente
para matar mil Papas!”

Peguei uma cerveja destampada e tomei uma boa golada.
Escute – disse Vicki –, você sempre se embebeda nesses recitais. Não pode se conter?
Eu me embebedo em meus próprios recitais – eu disse. – Também não suporto as minhas coisas.
Viscosa piedade – prosseguia Valoff – é isso que somos, viscosa piedade, viscosa viscosa viscosa piedade.
Ele vai falar sobre um corvo – eu disse.
Viscosa piedade – continuou Valoff – e o corvo nunca mais...
Dei uma risada. Valoff reconheceu a risada. Baixou o olhar para mim.
Senhoras e senhores – disse –, na plateia hoje temos o poeta Henry Chinaski.
Ouviram-se leves vaias. Eles me conheciam. “Porco sexista!” “Bebum!” “Filho da puta!” Tomei outro gole.
Por favor, prossiga, Victor – eu disse.
Ele prosseguiu:

...condicionado sob o montículo da coragem
o iminente retângulo mesquinho falsificado não
é mais que um gene em Gênova
um quádruplo Quetzalcoatl
e a chinesa chora agridoce e bárbara
dentro de seu regalo!”

É lindo – disse Vicki –, mas de que é que ele está falando?
Está falando em chupar uma xoxota.
É o que eu pensava. É um belo homem.
Espero que ele chupe xoxota melhor do que escreve.

dor, nossa, minha dor,
esta dor de vagabundo,
estrelas e listras de dor,
cataratas de dor
ondas de dor,
dor com desconto
por toda parte...”

– “Esta dor de vagabundo” – eu disse. – Gosto disso.
Ele parou de falar em chupar xoxota?
Parou, agora diz que não se sente bem.

...uma dúzia de frade, um primo de primo
toma a estreptomicina
e, propício, engole meu
gonfalon.
Eu sonho o plasma de carnaval
do outro lado do couro frenético...”

Agora que é que ele está dizendo? – perguntou Vicki.
Disse que está se preparando pra chupar xoxota de novo.
De novo?
Victor leu mais um pouco e eu bebi mais um pouco. Então ele pediu um intervalo de dez minutos e o público foi reunir-se ao pé do pódio. Vicki foi também. Eu sentia calor e saí à rua para esfriar. Havia um bar a meia quadra. Pedi uma cerveja. Não estava cheio demais. Na TV, passava um jogo de basquete. Fiquei vendo o jogo. Claro, não me importava quem ganhasse. Meu único pensamento era: meu deus, como correm de um lado para outro, de um lado para outro. Aposto que estão com as colhoneiras encharcadas, aposto que estão com um fedor pavoroso no cu. Tomei outra cerveja e voltei para o antro da poesia. Valoff já estava de volta. Eu podia ouvi-lo meia quadra rua abaixo:

Sufoca, Columbia, e os cavalos mortos de
minha alma
saúdem-me nos portões
saúdem-me dormindo, Historiadores
vejam esse terníssimo Passado
saltado com
sonhos de gueixas, mortos treinados com
importunismo!”
Encontrei minha poltrona junto a Vicki.

Que ele está dizendo agora? – ela me perguntou.
Na verdade não está dizendo muita coisa. Basicamente, o que está dizendo é que não consegue dormir à noite. Precisa arranjar um emprego.
Está dizendo que deve arranjar um emprego?
Não, sou eu que estou dizendo isso.

...o lemming e a estrela cadente são
irmãos, a disputa do lago
é o El Dorado de meu
coração. Venha tomar minha cabeça, venha tomar
meus olhos, me surre com uma espora...”

Agora, que é que ele está dizendo?
Está dizendo que precisa de uma mulher grande e gorda pra bater nele.
Não seja engraçadinho. Ele está dizendo mesmo isso?
Nós dois dizemos isso.

...eu podia comer o vazio,
eu podia disparar cartuchos de amor na escuridão
eu podia pedir à Índia tua palha
recessiva...”

Bem, Victor seguia e seguia, e seguia. Uma pessoa sã da cabeça levantou-se e saiu. O resto de nós ficou.

...eu digo: arrastem os deuses mortos
pela grama áspera!
digo que a palma é lucrativa
digo: veja, veja, veja
em torno de nós:
todo amor é nosso
toda vida é nossa
o sol é nosso cão na ponta da correia
nada pode derrotar-nos!
foda-se o salmão!
só temos de estender a mão,
só temos de arrastar-nos para fora das
óbvias sepulturas,
a terra, a sujeira,
a esperança trançada de enxertos em nossos próprios
sentidos. Nada temos a receber e nada a
dar, temos apenas de
começar, começar, começar...!”

Muito obrigado – disse Victor – por estarem aqui.
Os aplausos foram ruidosos. Sempre aplaudiam. Victor estava imenso em sua glória. Ele ergueu a mesma garrafa de cerveja. Conseguiu até enrubescer. Depois deu um sorrisinho, um sorrisinho muito humano. As senhoras adoraram aquilo. Dei um último gole em minha garrafa de uísque.
Victor estava cercado. Dava autógrafos e respondia a perguntas. A seguir viria sua exposição. Consegui tirar Vicki dali e descemos a rua de volta ao carro.
Ele recita com força – ela disse.
É, tem uma boa voz.
O que você acha da obra dele?
Acho pura.
Acho que você tem ciúmes.
Vamos parar aqui pra uma bebida – eu disse. – Tem um jogo de basquete.
Tudo bem – ela disse.
Tivemos sorte. O jogo continuava. Sentamo-nos.
Uau – disse Vicki –, olha só as pernas compridas desses caras!
Agora sim, isto é que é assunto – eu disse. – Que vai tomar?
Scotch com soda.
Pedi dois scotch com soda e ficamos vendo o jogo. Os caras corriam de um lado para outro, de um lado para outro. Maravilha. Pareciam muito excitados com alguma coisa. O lugar não estava cheio. Parecia a melhor parte da noite.

Charles Bukowski, in Numa Fria

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