segunda-feira, 29 de agosto de 2022

A Vida no Céu | Oitavo capítulo


(Identidade: não tem a ver com o lugar onde nascemos, pois no céu tudo é movimento, e sim com os lugares por onde passamos. Identidade é o que a viagem faz de nós enquanto continua. Só os mortos, os que deixaram de viajar, possuem uma identidade bem definida.)

Cresci a escutar histórias sobre balões-fantasma
Nós, os meninos, ouvíamos os mais velhos contarem essas histórias, ao entardecer, no Jango, de olhos arregalados e pele de galinha. Os enredos, é verdade, pouco variavam: uma balsa que se aproximava de uma aldeia, sem responder a nenhuma saudação ou aviso. Abalroavam-na, para impedir a colisão, e não encontravam ninguém lá dentro. Eu gosto, em particular, da lenda do Holandês Voador, um enorme balão, muito decrépito mas extremamente rápido, que surge em noites de temporal, atravessando-se diante dos grandes dirigíveis. Avistar o Holandês Voador – diz-se – prenuncia terríveis tragédias.
Pensava nisto tudo enquanto atravessava o calabre, de volta à Maianga, com a bebé ao colo. Deixei-a aos cuidados de Aimée e de Sibongile e fui para a cabina de pilotagem. Durante horas busquei, na Skypedia, uma balsa com as características da que encontráramos: um balão a hélio, de três andares, pintado de azul. Quatro motores movidos a energia solar e a gasóleo e capacidade para oito pessoas. Encontrei mais de cento e cinquenta. Aimée interrompeu os meus pensamentos. Trazia a bebé ao colo:
Descobriste alguma coisa?
Não.
Como vamos chamá-la?
A menina olhou para mim e sorriu. Tinha um porte de rainha. Devolvi-lhe o sorriso:
Vera Regina – respondi. – A verdadeira rainha. E à balsa, para já, vamos chamar Nova Esperança.
Vera não utilizava connosco senão uma meia dúzia de palavras. Contudo, entusiasmava-se sempre que os papagaios apareciam, correndo para eles com largos gestos e risos. Parecia conversar com os papagaios, não em inglês, nem sequer num inglês de papagaio, mas numa língua de aves, verde, húmida e exuberante, como imagino que a terra tenha sido um dia.
Na viagem até Jakarta encontrámos mais duas balsas pesqueiras, uma portuguesa, a Alfama, e outra cubana, a Sancti Spiritus. Os portugueses, um casal idoso, mostraram-se encantados por nos verem. Marcolino, o marido, conhecera Luanda, a Luanda original, antes do Dilúvio. Passou uma noite a contar-me histórias da terra dos meus pais. Ele dizia, “a terra dos teus pais”, e suspirava. Repetia, “a terra, a terra”, e os seus olhos, cor de avelã, enchiam-se de lágrimas. Perguntei-lhe:
Do que tem mais saudades, lá, da terra?
Já sabia a resposta. A resposta é sempre a mesma:
Queria correr. Do que tenho mais saudades é de correr, de andar, andar, andar, de me poder mover para toda a parte. E das árvores, sim, tenho muitas saudades das árvores.
Aimée interessou-se:
Dizem que havia árvores gigantescas.
Sim, filha – confirmou o velho. – Havia árvores enormes e muito, muito velhas. As árvores eram os seres mais velhos do planeta. Morreram todas. Acho que morreram todas.
Nós temos árvores, lá no Paris...
Árvores?! – O velho riu-se, descrente. – Oh, as árvores! As árvores não são como os homens, precisam de raízes. Não fincam raízes nas nuvens. Ninguém finca raízes nas nuvens. Às vezes sonho com árvores. Sonho com carvalhos, com oliveiras. Sonho até com eucaliptos. Lá, na terra, eu antipatizava com os eucaliptos. Agora, se voltasse a encontrar um eucalipto, abraçar-me-ia a ele. Pedia-lhe perdão.
Os cubanos, ou melhor, as cubanas, sete mulheres muito jovens, receberam-nos ainda melhor. Sibongile revelou-se muito útil, com os seus truques de cartomante. Todas as mulheres insistiram em marcar uma consulta com ela, trocando advertências e pressentimentos por bom peixe, acabado de sair do mar. Antes de nos despedirmos, Karla, a mais velha, abriu uma garrafa de rum – de verdadeiro rum! –, oferta de uma das avós. Olhou-me nos olhos:
Vamos brindar aos encontros!
Se não tivesse uma promessa a cumprir ter-me-ia demorado mais alguns dias. Aimée acordou-me numa manhã brumosa:
Vem! Já vejo Jakarta no radar.
Tinha-a ensinado a manobrar a Maianga. Ensinei-a ainda a operar com o radar e o computador de bordo, a ler as estrelas e a estabelecer rotas, evitando ventos e tempestades. Aimée aprendia com rapidez. Fixava tudo. Transformara-se, em apenas duas semanas, numa exímia navegante. Subi até à cabina de pilotagem. Lá estava Jakarta, pulsando no ecrã. Cinco horas mais tarde o céu abriu-se e vimos emergir ao longe, batida por uma luz violenta, a imensa teia verde da aldeia indonésia.
Sim, ao longe, Jakarta é verde. Quase todos os balões estão pintados de verde, alem dos cabos e das redes. À medida que nos aproximávamos, porém, a teia ia-se abrindo numa infinidade de outras cores. As cinco altas torres de atracagem, erguidas numa das extremidades de Jakarta, destacam-se do conjunto por estarem pintadas de cor de laranja. Quatro delas estavam totalmente ocupadas. Pedi licença à torre de controlo para atracar na quinta torre.
Selamat Datang! – respondeu-me uma voz de mulher.
As mesmas palavras estavam escritas a tinta preta em cada uma das torres. Deduzi que fosse uma mensagem de boas-vindas. Lancei as amarras e, em menos de dez minutos, tinha a Maianga e a Nova Esperança bem presas à torre. Descemos. Expliquei à polícia de fronteira que encontrara uma balsa à deriva com uma menina lá dentro. Não me prestaram atenção:
A menina não pode ficar aqui, não é um problema nosso. Levem-na. Vocês podem permanecer em Jakarta três dias. Boa estadia.
Descemos para a praça principal, um enorme bazar. Ali se vendem, à luz livre do sol, panos e roupas de seda estampados em cores incríveis. Comprei camisas para mim e para Aimée. Comprei também, na secção das comidas, duas caixas de peixe seco, temperado com especiarias raras. Vimos ainda muitos comerciantes de joias e antiguidades. Os indonésios são excelentes mergulhadores-coletores. Viajam para longe, em balsas pequenas, muito rápidas, à procura de atóis e ilhéus mortos. Não conseguiria adivinhar nem a serventia nem a proveniência de muitos dos objetos à venda. Comprei um pente em marfim. Aimée encantou-se com uma pequena boneca de porcelana. Enquanto divagávamos entre a multidão, estonteados pela intensidade dos cheiros e das cores, Sibongile interrogava os vendedores.
Mang?
Logo alguém lhe apontou um Mang. Sibongile correu para ele, mas não era o amigo que procurava. Pouco depois apareceu mais um Mang. E outro ainda. Suponho que Mang seja um nome popular em Jakarta. Ao anoitecer, quando retornámos à Maianga, continuávamos sem saber o paradeiro do genuíno Mang:
Esse teu amigo não tem outro nome? – perguntei-lhe. – Sei lá, Mang da Silva?
Os indonésios não costumam utilizar um nome de família. Ele é de Bali. Em Bali, ao quarto filho é costume chamar Nyoman ou Komang. O diminutivo de Komang é Mang.
Conversávamos e ríamos, enquanto saboreávamos um caldo de peixe com mandioca. A mandioca, como a batata-doce, a cenoura e outros tubérculos, são produtos caros, um luxo em qualquer mesa. Aquelas, eu comprara no Paris. O tempo que passara a trabalhar nas cozinhas afinara-me o paladar. Preparava-me para encher mais uma tigela quando escutei a buzina do computador central. Era uma chamada da torre de controlo:
O senhor Mang pergunta se pode subir.
Disse que sim e fui recebê-lo ao convés. Vi surgir um velho muito magro, de barbas longas, grisalhas, cuidadosamente entrançadas. Usava uns óculos redondos, antigos, que o faziam parecer mais frágil. Surpreendeu-me, ao apertar-lhe a mão, senti-la firme e calejada:
Creio que andaram à minha procura – disse Mang, numa voz macia. – Disseram-me que uma senhora chamada Sibongile procurava por alguém com o meu nome. Eu sou amigo da Bongi.
Apresentei-me e conduzi-o à sala de jantar. Sibongile ergueu-se com um grito, “Mang!”, e saltou para o abraçar. Compreendi, naquele instante, que entre os dois existira, em tempos, mais do que amizade. Quis saber como se haviam conhecido. A sangoma encarou-me, aflita:
Foi há muitos anos...
Sim – repetiu Mang. – Há muitos anos. Naquele tempo eu era outra pessoa.
Está calado! – sussurrou Sibongile.
Fui pirata – prosseguiu Mang sem lhe prestar atenção. – Em determinada altura tomámos de assalto uma aldeia sul-africana chamada Durban. Foi lá que nos conhecemos.
Aimée sorriu, deslumbrada:
A Bongi apaixonou-se por si, certo? Síndrome de Estocolmo!
Mang sorriu timidamente:
Foi o contrário, eu apaixonei-me por Bongi. Fugimos, de noite, numa balsa decrépita, sem radar, sem computadores, sem instrumentos de navegação. Andámos à deriva durante três dias.
Inclinei-me sobre ele, tenso:
Quem era o capitão? O capitão dos piratas?
Boniface, do Española Way. Um tipo completamente louco!
Quase saltei sobre Sibongile:
O que significa isto?
A sangoma ergueu ambas as mãos, num gesto apaziguador:
Calma! Calma! Tencionava contar-vos tudo. Só estava à espera de uma boa oportunidade.

José Eduardo Agualusa, in A Vida no Céu

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