(Identidade:
não tem a ver com o lugar onde nascemos, pois no céu tudo é
movimento, e sim com os lugares por onde passamos. Identidade é o
que a viagem faz de nós enquanto continua. Só os mortos, os que
deixaram de viajar, possuem uma identidade bem definida.)
Cresci
a escutar histórias sobre balões-fantasma
Nós,
os meninos, ouvíamos os mais velhos contarem essas histórias, ao
entardecer, no Jango, de olhos arregalados e pele de galinha. Os
enredos, é verdade, pouco variavam: uma balsa que se aproximava de
uma aldeia, sem responder a nenhuma saudação ou aviso.
Abalroavam-na, para impedir a colisão, e não encontravam ninguém
lá dentro. Eu gosto, em particular, da lenda do Holandês Voador, um
enorme balão, muito decrépito mas extremamente rápido, que surge
em noites de temporal, atravessando-se diante dos grandes dirigíveis.
Avistar o Holandês Voador – diz-se – prenuncia terríveis
tragédias.
Pensava
nisto tudo enquanto atravessava o calabre, de volta à Maianga, com a
bebé ao colo. Deixei-a aos cuidados de Aimée e de Sibongile e fui
para a cabina de pilotagem. Durante horas busquei, na Skypedia, uma
balsa com as características da que encontráramos: um balão a
hélio, de três andares, pintado de azul. Quatro motores movidos a
energia solar e a gasóleo e capacidade para oito pessoas. Encontrei
mais de cento e cinquenta. Aimée interrompeu os meus pensamentos.
Trazia a bebé ao colo:
– Descobriste
alguma coisa?
– Não.
– Como
vamos chamá-la?
A
menina olhou para mim e sorriu. Tinha um porte de rainha. Devolvi-lhe
o sorriso:
– Vera
Regina – respondi. – A verdadeira rainha. E à balsa, para já,
vamos chamar Nova Esperança.
Vera
não utilizava connosco senão uma meia dúzia de palavras. Contudo,
entusiasmava-se sempre que os papagaios apareciam, correndo para eles
com largos gestos e risos. Parecia conversar com os papagaios, não
em inglês, nem sequer num inglês de papagaio, mas numa língua de
aves, verde, húmida e exuberante, como imagino que a terra tenha
sido um dia.
Na
viagem até Jakarta encontrámos mais duas balsas pesqueiras, uma
portuguesa, a Alfama, e outra cubana, a Sancti Spiritus. Os
portugueses, um casal idoso, mostraram-se encantados por nos verem.
Marcolino, o marido, conhecera Luanda, a Luanda original, antes do
Dilúvio. Passou uma noite a contar-me histórias da terra dos meus
pais. Ele dizia, “a terra dos teus pais”, e suspirava. Repetia,
“a terra, a terra”, e os seus olhos, cor de avelã, enchiam-se de
lágrimas. Perguntei-lhe:
– Do
que tem mais saudades, lá, da terra?
Já
sabia a resposta. A resposta é sempre a mesma:
– Queria
correr. Do que tenho mais saudades é de correr, de andar, andar,
andar, de me poder mover para toda a parte. E das árvores, sim,
tenho muitas saudades das árvores.
Aimée
interessou-se:
– Dizem
que havia árvores gigantescas.
– Sim,
filha – confirmou o velho. – Havia árvores enormes e muito,
muito velhas. As árvores eram os seres mais velhos do planeta.
Morreram todas. Acho que morreram todas.
– Nós
temos árvores, lá no Paris...
– Árvores?!
– O velho riu-se, descrente. – Oh, as árvores! As árvores não
são como os homens, precisam de raízes. Não fincam raízes nas
nuvens. Ninguém finca raízes nas nuvens. Às vezes sonho com
árvores. Sonho com carvalhos, com oliveiras. Sonho até com
eucaliptos. Lá, na terra, eu antipatizava com os eucaliptos. Agora,
se voltasse a encontrar um eucalipto, abraçar-me-ia a ele. Pedia-lhe
perdão.
Os
cubanos, ou melhor, as cubanas, sete mulheres muito jovens,
receberam-nos ainda melhor. Sibongile revelou-se muito útil, com os
seus truques de cartomante. Todas as mulheres insistiram em marcar
uma consulta com ela, trocando advertências e pressentimentos por
bom peixe, acabado de sair do mar. Antes de nos despedirmos, Karla, a
mais velha, abriu uma garrafa de rum – de verdadeiro rum! –,
oferta de uma das avós. Olhou-me nos olhos:
– Vamos
brindar aos encontros!
Se
não tivesse uma promessa a cumprir ter-me-ia demorado mais alguns
dias. Aimée acordou-me numa manhã brumosa:
– Vem!
Já vejo Jakarta no radar.
Tinha-a
ensinado a manobrar a Maianga. Ensinei-a ainda a operar com o radar e
o computador de bordo, a ler as estrelas e a estabelecer rotas,
evitando ventos e tempestades. Aimée aprendia com rapidez. Fixava
tudo. Transformara-se, em apenas duas semanas, numa exímia
navegante. Subi até à cabina de pilotagem. Lá estava Jakarta,
pulsando no ecrã. Cinco horas mais tarde o céu abriu-se e vimos
emergir ao longe, batida por uma luz violenta, a imensa teia verde da
aldeia indonésia.
Sim,
ao longe, Jakarta é verde. Quase todos os balões estão pintados de
verde, alem dos cabos e das redes. À medida que nos aproximávamos,
porém, a teia ia-se abrindo numa infinidade de outras cores. As
cinco altas torres de atracagem, erguidas numa das extremidades de
Jakarta, destacam-se do conjunto por estarem pintadas de cor de
laranja. Quatro delas estavam totalmente ocupadas. Pedi licença à
torre de controlo para atracar na quinta torre.
– Selamat
Datang! – respondeu-me uma voz de mulher.
As
mesmas palavras estavam escritas a tinta preta em cada uma das
torres. Deduzi que fosse uma mensagem de boas-vindas. Lancei as
amarras e, em menos de dez minutos, tinha a Maianga e a Nova
Esperança bem presas à torre. Descemos. Expliquei à polícia de
fronteira que encontrara uma balsa à deriva com uma menina lá
dentro. Não me prestaram atenção:
– A
menina não pode ficar aqui, não é um problema nosso. Levem-na.
Vocês podem permanecer em Jakarta três dias. Boa estadia.
Descemos
para a praça principal, um enorme bazar. Ali se vendem, à luz livre
do sol, panos e roupas de seda estampados em cores incríveis.
Comprei camisas para mim e para Aimée. Comprei também, na secção
das comidas, duas caixas de peixe seco, temperado com especiarias
raras. Vimos ainda muitos comerciantes de joias e antiguidades. Os
indonésios são excelentes mergulhadores-coletores. Viajam para
longe, em balsas pequenas, muito rápidas, à procura de atóis e
ilhéus mortos. Não conseguiria adivinhar nem a serventia nem a
proveniência de muitos dos objetos à venda. Comprei um pente em
marfim. Aimée encantou-se com uma pequena boneca de porcelana.
Enquanto divagávamos entre a multidão, estonteados pela intensidade
dos cheiros e das cores, Sibongile interrogava os vendedores.
– Mang?
Logo
alguém lhe apontou um Mang. Sibongile correu para ele, mas não era
o amigo que procurava. Pouco depois apareceu mais um Mang. E outro
ainda. Suponho que Mang seja um nome popular em Jakarta. Ao
anoitecer, quando retornámos à Maianga, continuávamos sem saber o
paradeiro do genuíno Mang:
– Esse
teu amigo não tem outro nome? – perguntei-lhe. – Sei lá, Mang
da Silva?
– Os
indonésios não costumam utilizar um nome de família. Ele é de
Bali. Em Bali, ao quarto filho é costume chamar Nyoman ou Komang. O
diminutivo de Komang é Mang.
Conversávamos
e ríamos, enquanto saboreávamos um caldo de peixe com mandioca. A
mandioca, como a batata-doce, a cenoura e outros tubérculos, são
produtos caros, um luxo em qualquer mesa. Aquelas, eu comprara no
Paris. O tempo que passara a trabalhar nas cozinhas afinara-me o
paladar. Preparava-me para encher mais uma tigela quando escutei a
buzina do computador central. Era uma chamada da torre de controlo:
– O
senhor Mang pergunta se pode subir.
Disse
que sim e fui recebê-lo ao convés. Vi surgir um velho muito magro,
de barbas longas, grisalhas, cuidadosamente entrançadas. Usava uns
óculos redondos, antigos, que o faziam parecer mais frágil.
Surpreendeu-me, ao apertar-lhe a mão, senti-la firme e calejada:
– Creio
que andaram à minha procura – disse Mang, numa voz macia. –
Disseram-me que uma senhora chamada Sibongile procurava por alguém
com o meu nome. Eu sou amigo da Bongi.
Apresentei-me
e conduzi-o à sala de jantar. Sibongile ergueu-se com um grito,
“Mang!”, e saltou para o abraçar. Compreendi, naquele instante,
que entre os dois existira, em tempos, mais do que amizade. Quis
saber como se haviam conhecido. A sangoma encarou-me, aflita:
– Foi
há muitos anos...
– Sim
– repetiu Mang. – Há muitos anos. Naquele tempo eu era outra
pessoa.
– Está
calado! – sussurrou Sibongile.
– Fui
pirata – prosseguiu Mang sem lhe prestar atenção. – Em
determinada altura tomámos de assalto uma aldeia sul-africana
chamada Durban. Foi lá que nos conhecemos.
Aimée
sorriu, deslumbrada:
– A
Bongi apaixonou-se por si, certo? Síndrome de Estocolmo!
Mang
sorriu timidamente:
– Foi
o contrário, eu apaixonei-me por Bongi. Fugimos, de noite, numa
balsa decrépita, sem radar, sem computadores, sem instrumentos de
navegação. Andámos à deriva durante três dias.
Inclinei-me
sobre ele, tenso:
– Quem
era o capitão? O capitão dos piratas?
– Boniface,
do Española Way. Um tipo completamente louco!
Quase
saltei sobre Sibongile:
– O
que significa isto?
A
sangoma ergueu ambas as mãos, num gesto apaziguador:
– Calma!
Calma! Tencionava contar-vos tudo. Só estava à espera de uma boa
oportunidade.
José Eduardo Agualusa, in A Vida no Céu
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