Em
Cochabamba, na Bolívia, num concurso para coveiros instituído pela
municipalidade, obtive o segundo lugar, o que me valeu um contrato
por dois anos com direito a dormir no cemitério. Pablo Morales, que
foi nomeado comigo e obteve o primeiro lugar devido à sua larga
experiência agrícola, era de pouca conversa e tinha verdadeira
paixão pelo seu métier, ficando irritadiço e insuportável quando
não tínhamos nada a fazer e nos víamos obrigados a cruzar os
braços, como mineiros em greve. O que nos valia eram as revoluções
constantes no país, que nos davam sempre um trabalho intensivo
durante uma semana ou duas — ou então uma ou outra epidemia
imprevista e fulminante, que arrasava com pelo menos um terço da
população. De uma feita chegamos a receber duzentos mortos de uma
localidade vizinha, onde ocorrera um terremoto de magníficas
proporções e que proporcionou a Pablo (e a mim também) alguns
serões maravilhosos, à pálida luz da lua.
Acusados
de furto e violação de sepulturas, tivemos que escapar-nos às
pressas numa noite de chuva e refugiar-nos em território peruano,
onde Pablo foi morto a tiros por um caçador de codornas e eu,
faminto, me identifiquei como sobrinho do rei da Bessarábia, até
que pudessem provar o contrário. Em Cuzco tomei-me de amores por uma
rapariga que não sabia uma só palavra de árabe, nem eu tampouco, e
pude manter-me dignamente à sua custa durante alguns meses, até que
o governo me deportou para a ilha de Sumatra num cargueiro que levava
lhamas, algumas bugigangas de grosseira fabricação e meia dúzia de
espiões comunistas. Da ilha de Sumatra pulei, não sei como, para a
de Madagáscar, de onde alcancei a nado a costa de Moçambique,
batendo todos os recordes da distância, mas incógnito. Empreguei-me
como professor de natação na cidade de Beira, onde, falando embora
o português, não conseguia entender o português deles e tive
necessidade de arranjar um intérprete mestiço, que me roubou as
poucas economias que eu tinha e ainda me levou o calção de banho,
obrigando-me a mudar temporariamente meu sistema de ensino, que de
prático passou a teórico.
Nas
horas vagas compunha poemas futuristas, que um de meus alunos se
incumbia de traduzir para o português local e eram publicados, às
quintas-feiras, no Observador Econômico e Financeiro — seção
feminina. Demitido a bem do serviço público, inscrevi-me numa
maratona de danças e fui transportado semi-inconsciente para um
hospital de tuberculosos, onde vim a falecer na madrugada de 15 de
setembro de 1934. Mas o atestado de óbito fora passado um pouco às
pressas e obtive alta dois meses depois, mais forte do que um touro
da Pomerânia ou de qualquer outra parte do globo.
Quando
dei por mim estava em pleno coração da África Equatorial Francesa,
caçando elefantes e traduzindo Virgílio para o alemão, a pedido do
padre Kremmer, que não sabia latim. Com a renda obtida de 15 mil
elefantes mortos e alguns leopardos empalhados estabeleci-me em
Brazzaville com um negócio de falsos diamantes e uma modesta casa de
tolerância, servida por três nativas e duas francesas já avançadas
em anos e que morreram logo depois. Vítima de injusta perseguição
da polícia, mudei-me atabalhoadamente para Leopoldville, que fica
logo defronte, e onde, fazendo-me passar por filho bastardo do rei
dos belgas, obtive permissão para instalar-me com um novo
prostíbulo, que se incendiou pouco depois. Reduzido à miséria,
deflorei a filha de um capitalista que era dono de uma mina de
estanho, e com o dinheiro da chantagem que lhe impus montei uma
fábrica de relíquias e outros objetos de culto religioso, que
prosperou durante algum tempo mas acabou indo à falência devido à
perseguição do clero local. Como o capitalista ainda dispusesse de
uma outra filha virgem, dei-lhe o mesmo destino da irmã e impus
dessa vez um preço mais alto do que da primeira, o que me permitiu
financiar com êxito a minha candidatura às próximas eleições
locais e ser eleito deputado por expressiva margem de votos. Como não
conseguisse provar minha nacionalidade belga, cassaram-me o mandato
arbitrariamente e ainda me moveram um processo pelos dois
defloramentos (que então já eram três) executados nas barbas do
tal capitalista do estanho, do que me resultou ser condenado à
prisão perpétua e a trabalhos forçados numa mina de diamantes
explorada pelo Estado. Consegui fugir num helicóptero que pousou
justamente a dois passos de minha picareta: eu e mais dois
sentenciados belgas que me ajudaram a torcer o pescoço dos afoitos
aviadores e a descobrir, dos céus, a direção exata do continente
americano. Em New York fomos recebidos com as honras de heróis
transatlânticos e entrevistados por uma cadeia de trinta mil
jornais, embora tivéssemos a precaução de não proferir uma única
palavra em inglês ou mesmo em qualquer outra língua viva. Com um
contrato que nos ofereceram a Universal-lnternational e uma fábrica
de minhocas em conserva para uso de pescadores, conseguimos afinal
separar-nos uns dos outros e rumar cada um para uma direção
diferente (a fim de evitar suspeitas), a mim me cabendo o México e
as demais repúblicas da América Central, que atravessei disfarçado
em padre e mesmo em cônego — como aconteceu em Tampico — até
dar com os costados na bela capital da Colômbia, que
inexplicavelmente nesse dia, nem no dia seguinte, não se achava em
revolução.
(Interrompido
pela chegada da pseudoenfermeira, que veio aplicar-me o soro da
juventude, que — agora eu sei — não passa do chamado soro da
verdade, largamente aplicado durante a guerra e durante a paz. Seja o
que Deus quiser.)
Walter Campos de Carvalho, in A lua vem da Ásia
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