segunda-feira, 29 de agosto de 2022

A lua vem da Ásia | Capítulo CLXXXIV

Em Cochabamba, na Bolívia, num concurso para coveiros instituído pela municipalidade, obtive o segundo lugar, o que me valeu um contrato por dois anos com direito a dormir no cemitério. Pablo Morales, que foi nomeado comigo e obteve o primeiro lugar devido à sua larga experiência agrícola, era de pouca conversa e tinha verdadeira paixão pelo seu métier, ficando irritadiço e insuportável quando não tínhamos nada a fazer e nos víamos obrigados a cruzar os braços, como mineiros em greve. O que nos valia eram as revoluções constantes no país, que nos davam sempre um trabalho intensivo durante uma semana ou duas — ou então uma ou outra epidemia imprevista e fulminante, que arrasava com pelo menos um terço da população. De uma feita chegamos a receber duzentos mortos de uma localidade vizinha, onde ocorrera um terremoto de magníficas proporções e que proporcionou a Pablo (e a mim também) alguns serões maravilhosos, à pálida luz da lua.
Acusados de furto e violação de sepulturas, tivemos que escapar-nos às pressas numa noite de chuva e refugiar-nos em território peruano, onde Pablo foi morto a tiros por um caçador de codornas e eu, faminto, me identifiquei como sobrinho do rei da Bessarábia, até que pudessem provar o contrário. Em Cuzco tomei-me de amores por uma rapariga que não sabia uma só palavra de árabe, nem eu tampouco, e pude manter-me dignamente à sua custa durante alguns meses, até que o governo me deportou para a ilha de Sumatra num cargueiro que levava lhamas, algumas bugigangas de grosseira fabricação e meia dúzia de espiões comunistas. Da ilha de Sumatra pulei, não sei como, para a de Madagáscar, de onde alcancei a nado a costa de Moçambique, batendo todos os recordes da distância, mas incógnito. Empreguei-me como professor de natação na cidade de Beira, onde, falando embora o português, não conseguia entender o português deles e tive necessidade de arranjar um intérprete mestiço, que me roubou as poucas economias que eu tinha e ainda me levou o calção de banho, obrigando-me a mudar temporariamente meu sistema de ensino, que de prático passou a teórico.
Nas horas vagas compunha poemas futuristas, que um de meus alunos se incumbia de traduzir para o português local e eram publicados, às quintas-feiras, no Observador Econômico e Financeiro — seção feminina. Demitido a bem do serviço público, inscrevi-me numa maratona de danças e fui transportado semi-inconsciente para um hospital de tuberculosos, onde vim a falecer na madrugada de 15 de setembro de 1934. Mas o atestado de óbito fora passado um pouco às pressas e obtive alta dois meses depois, mais forte do que um touro da Pomerânia ou de qualquer outra parte do globo.
Quando dei por mim estava em pleno coração da África Equatorial Francesa, caçando elefantes e traduzindo Virgílio para o alemão, a pedido do padre Kremmer, que não sabia latim. Com a renda obtida de 15 mil elefantes mortos e alguns leopardos empalhados estabeleci-me em Brazzaville com um negócio de falsos diamantes e uma modesta casa de tolerância, servida por três nativas e duas francesas já avançadas em anos e que morreram logo depois. Vítima de injusta perseguição da polícia, mudei-me atabalhoadamente para Leopoldville, que fica logo defronte, e onde, fazendo-me passar por filho bastardo do rei dos belgas, obtive permissão para instalar-me com um novo prostíbulo, que se incendiou pouco depois. Reduzido à miséria, deflorei a filha de um capitalista que era dono de uma mina de estanho, e com o dinheiro da chantagem que lhe impus montei uma fábrica de relíquias e outros objetos de culto religioso, que prosperou durante algum tempo mas acabou indo à falência devido à perseguição do clero local. Como o capitalista ainda dispusesse de uma outra filha virgem, dei-lhe o mesmo destino da irmã e impus dessa vez um preço mais alto do que da primeira, o que me permitiu financiar com êxito a minha candidatura às próximas eleições locais e ser eleito deputado por expressiva margem de votos. Como não conseguisse provar minha nacionalidade belga, cassaram-me o mandato arbitrariamente e ainda me moveram um processo pelos dois defloramentos (que então já eram três) executados nas barbas do tal capitalista do estanho, do que me resultou ser condenado à prisão perpétua e a trabalhos forçados numa mina de diamantes explorada pelo Estado. Consegui fugir num helicóptero que pousou justamente a dois passos de minha picareta: eu e mais dois sentenciados belgas que me ajudaram a torcer o pescoço dos afoitos aviadores e a descobrir, dos céus, a direção exata do continente americano. Em New York fomos recebidos com as honras de heróis transatlânticos e entrevistados por uma cadeia de trinta mil jornais, embora tivéssemos a precaução de não proferir uma única palavra em inglês ou mesmo em qualquer outra língua viva. Com um contrato que nos ofereceram a Universal-lnternational e uma fábrica de minhocas em conserva para uso de pescadores, conseguimos afinal separar-nos uns dos outros e rumar cada um para uma direção diferente (a fim de evitar suspeitas), a mim me cabendo o México e as demais repúblicas da América Central, que atravessei disfarçado em padre e mesmo em cônego — como aconteceu em Tampico — até dar com os costados na bela capital da Colômbia, que inexplicavelmente nesse dia, nem no dia seguinte, não se achava em revolução.

(Interrompido pela chegada da pseudoenfermeira, que veio aplicar-me o soro da juventude, que — agora eu sei — não passa do chamado soro da verdade, largamente aplicado durante a guerra e durante a paz. Seja o que Deus quiser.)

Walter Campos de Carvalho, in A lua vem da Ásia

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