Há
oito anos uma moça chamada Nélida Piñon, descendente muito
brasileira de espanhóis, iniciava sua carreira literária com um
livro dificílimo de ler: Guia-Mapa de Gabriel Arcanjo. Sem
nenhuma concessão ao leitor, o livro, para a maioria, era
ininteligível. Ainda na mesma linha publicou, em 1963, Madeira
feita cruz. E três anos depois o livro de contos Tempo das
frutas, este já bem mais realizado, com ótimos contos. O seu
romance O fundador ganhou um prêmio especial no Concurso
Nacional Walmap e aparecerá, pela Editora José Álvaro, na segunda
quinzena de novembro. Continua escrevendo: tem prontos um livro de
contos e uma peça de teatro. Tudo escrito num estilo muito especial,
muito nélida piñon.
Enquanto
isso, dirige o primeiro laboratório de criação literária no
Brasil, na Faculdade de Letras do Rio de Janeiro, cargo que lhe
assenta perfeitamente: só poderia ser ministrado realmente por
alguém com a inteligência criadora de Nélida. Fiz-lhe, a propósito
do laboratório, umas perguntas, que foram respondidas por Nélida
por escrito.
– Você
está dando um curso sobre criatividade literária, ou atividade
criadora de um modo geral?
– Literária,
em particular. Mas não separo o fenômeno literário da criatividade
em geral. Uma vez que criar é estar em todas as coisas.
– Você
crê que o laboratório de criação literária, da Faculdade de
Letras, possa orientar futuros escritores, ou seu curso tem apenas um
sentido cultural?
– Mais
importante que transmitir experiência, é discutir as razões que
justifiquem o escritor numa sociedade de consumo, em que o homem,
nutrindo-se do objeto, aprendeu a venerar geladeiras, carros,
instrumentos enfim que lhe são impostos como presumíveis
restauradores do espírito. Não acreditamos que o ofício de
escrever, assimilado de qualquer modo, determine imperativamente uma
elite. Ao contrário, como poverellos estaríamos mais aparelhados a
destronar as regras incompatíveis e uma comunidade adiposa. O
laboratório pretende tão somente queimar etapas, lidar com técnicas
dominantes na ficção contemporânea, sem mutilar porém o espírito
criador do aluno. Sobretudo transmitir a verdade – e ouvindo também
confirmamos nossa crença – de que compete afinal ao escritor
desvendar o labirinto, o escondido, a parcela, derrubar falsas
comemorações, intensificar dúvidas, protestos, ainda que seu grito
seja o último a se registrar numa região atomizada.
– Quais
os processos que liberam mais a criatividade?
– Todo
processo é válido, desde que se confirme a criação. Alguns
escritores, por exemplo, exigem o estado orgástico para criar,
aquele delírio impedindo-os de analisar o ato que estão conhecendo,
os frutos abastados da sua poderosa paixão. Outros elegem o caos
como modo de atingir a ordem; o que equivale a eleger a ordem para
estabelecer o caos na Terra. Certos escritores imitam a sedimentação
da rocha, cultivam estágios longínquos, são habitantes de eras
remotas, e tão pacientes que desprezam o tempo por acreditarem na
eternidade. Mas quem fala pelo escritor é seu próprio depoimento, o
impulso de não ser escravo e criar livre.
– Qual
é o seu método de escrever? Você planeja a trama antes de começar?
– Acredito
no convívio diário com a palavra, ainda que não seja de ordem
física. Sem tal abordagem regular, vejo reduzida minha capacidade de
expressão, dificilmente alcançando a forma necessária. Crio o que
preciso ao longo dos dias, as mais penosas horas, e da vivência
pessoal, colisões permanentes com a Terra. Existindo a consciência
de escrever, que este ato se repita constantemente. Não compreendo
amadorismo. Compreendo sim a vocação flagelada, difícil, espinhos
por toda a carne, que é a nossa coroa, o desafio de não transigir.
Fundador, meu último romance, foi estruturado antes de o iniciar.
Conhecia a técnica, a linguagem, o andamento que se devia adotar.
Embora elementos imponderáveis, entre o tanto que mais tarde
mutilamos corrigindo, como se não fosse nossa carne o que estamos
sacrificando – surgissem ao longo do livro como transfusão.
– Você
acredita em inspiração, ou acredita que o trabalho árduo é que
vale para escrever?
– Inspiração
era meu recurso de adolescente. Fase adulta exige outro confronto. E
como a natureza não me tornou instrumento de Deus, habituei-me a
avançar pesadamente no mundo escuro de um texto até descobrir a
primeira luz.
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
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