segunda-feira, 25 de julho de 2022

O Lobo do Mar | Capítulo 7

Enfim, depois de três dias de ventos inconstantes, pegamos os alísios de nordeste. Subi ao convés após uma noite bem-dormida, apesar do joelho machucado, e encontrei o Ghost fazendo espuma, navegando com a brisa à popa e todas as velas abertas, de lado a lado, exceto as bujarronas. Ah, a maravilha do vento alísio! Navegamos o dia e a noite inteiros, e o seguinte e o outro, dia após dia com o vento sempre à popa, firme e forte. A escuna navegava sozinha. Não havia necessidade de içar e descer os panos e talhas ou de ajustar os joanetes, e os marinheiros não precisavam fazer nada além de pilotar. Quando o sol se punha, as velas eram afrouxadas; pela manhã, assim que a umidade e o orvalho evaporavam e as velas relaxavam, eram novamente esticadas. E isso era tudo.
Dez nós, doze nós, onze nós(1), variando aqui e ali, é a velocidade que estamos fazendo. Com o vento impávido soprando sem parar do nordeste, vencemos quatrocentos e cinquenta quilômetros do trajeto entre uma alvorada e outra. A rapidez com que nos afastamos de São Francisco e singramos pelos trópicos me entristece e anima ao mesmo tempo. A cada dia sentimos o calor aumentar. No segundo quarto vespertino, os marujos despidos se reúnem no convés e jogam baldes de água do mar uns nos outros. Começaram a aparecer peixes-voadores, e durante a noite os marujos de guarda descem correndo até o convés para apanhar os que pulam a bordo. Pela manhã, depois que Thomas Mugridge foi devidamente subornado, a cozinha fica impregnada do cheiro de fritura; e quando Johnson consegue apanhar golfinhos da ponta do gurupés, a carne desses belos animais reluzentes é servida para toda a tripulação.
Johnson, ao que tudo indica, passa todo o tempo livre no gurupés ou no alto da plataforma da gávea, vendo o Ghost fender a água ao impulso das velas. Em seus olhos se vê paixão, adoração, e ele entra numa espécie de transe e fica contemplando em êxtase as velas infladas, a esteira espumosa, o barco arfando por cima das montanhas d’água que nos acompanham em procissão.
Os dias e noites são “puro deslumbre e selvagem deleite” (2), e, embora o trabalho penoso não me deixe muito tempo livre, aproveito os raros momentos para admirar a glória interminável do que eu nem sonhava existir no mundo. O céu acima é de um azul imaculado como o do próprio oceano, que por baixo do talha-mar tem a cor e o lustro do cetim azul-celeste. Nuvens alvas e felpudas pairam em toda a curva do horizonte, imóveis e imutáveis, como suportes de prata para o impecável céu turquesa.
Não esqueço de uma noite em que, em vez de ir dormir como devia, me deitei no castelo de proa e fiquei olhando o rastro espectral de espuma produzido mais abaixo pelo talha-mar do Ghost. O ruído lembrava o gorgolejo de um riacho a correr pelas pedras musgosas de um recanto sossegado, e essa melodia me fez divagar e esquecer que eu era Hump, o camaroteiro, ou Van Weyden, o homem que havia passado trinta e cinco anos sonhando em meio aos livros. Mas uma voz atrás de mim, a voz inconfundível de Wolf Larsen, com sua segurança invencível suavizada pelo apreço às palavras que ele citava, me tirou de meu devaneio.

O the blazing tropic night, when the wake’s a welt of light
That holds the hot sky tame,
And the steady forefoot snores through the planet-powdered floors
Where the scared whale flukes in flame.
Her plates are scarred by the sun, dear lass,
And her ropes are taut with dew,
For we’re booming down on the old trail, our own trail, the out trail,
We’re sagging south on the Long Trail — the trail that is always new.(3)

E então, Hump? O que lhe parece? — ele perguntou após a breve pausa que os versos e a ocasião exigiam.
Vi seu rosto. Estava iluminado como o mar, e os olhos piscavam na noite estrelada.
É no mínimo curioso que você seja capaz de manifestar esse entusiasmo — respondi com frieza.
Ora, homem, isso é viver! É a vida! — ele clamou.
Uma coisa barata e sem valor — devolvi-lhe suas palavras.
Ele riu, e foi a primeira vez que percebi uma alegria honesta em sua voz.
Ah, não consigo fazê-lo entender, não consigo meter na sua cabeça a coisa incrível que é a vida. É claro que ela não tem valor, exceto para si própria. E posso dizer que minha vida é muito valiosa neste exato momento. Para mim. Tem um preço incalculável, o que é um exagero imenso, você há de concordar, mas não posso evitá-lo porque é a vida dentro de mim que estipula o valor.
Tive a impressão de que ele procurava as palavras certas para expressar o que pensava, até que enfim prosseguiu.
Sabe, me sinto tomado por uma estranha exaltação. É como se o tempo ecoasse em mim, como se todos os poderes me pertencessem. Conheço a verdade, posso separar o bem e o mal, o certo e o errado. Minha visão é nítida e ampla. Quase consigo crer em Deus. Mas… — Sua voz mudou e a luz se apagou em seu rosto. — Que condição é essa em que me encontro? Essa alegria de viver, essa exultação da vida, essa inspiração, se posso chamá-la assim. É o que surge quando não há nada de errado com a digestão, quando o estômago funciona, o apetite está sob controle e tudo vai bem. É a gratificação da vida, o champanhe do sangue, a efervescência do fermento, o que leva certos homens a pensar em coisas sagradas, a ver Deus ou criá-lo, se não conseguem vê-lo. É apenas isso, a embriaguez da vida, o levedo fervilhando e rastejando, balbucios da vida levada à loucura pela consciência de que está viva. E… bah! Pagarei caro por isso amanhã, como acontece com os bêbados. E saberei que devo morrer, provavelmente no mar. Deixarei de rastejar por minha conta para rastejar na corrupção do mar inteiro, servirei de alimento, serei uma carcaça em decomposição, entregarei toda a força e movimento de meus músculos para que possam ser a força e o movimento de barbatanas, escamas e entranhas de peixes. Bah! E bah de novo! O champanhe já estragou. Perdeu as bolhas, ficou sem gosto.
Ele se retirou da mesma forma como havia aparecido, sem aviso, pulando no convés com o peso e a elegância de um tigre. O Ghost seguia abrindo caminho. Percebi que os gorgolejos do talha-mar lembravam um ronco, e voltando a escutá-lo me livrei aos poucos do efeito deixado em mim por Wolf Larsen e sua rápida transição do júbilo ao desespero. Nesse momento, um marinheiro que estava no poço do navio começou a entoar, com uma voz encorpada de tenor, a “Canção dos ventos alísios”:

Oh, I am the wind the seamen love —
I am steady, and strong, and true;
They follow my track by the clouds above,
O’er the fathomless tropic blue.
Through daylight and dark I follow the bark
I keep like a hound on her trail;
I’m strongest at noon, yet under the moon,
I stiffen the bunt of her sail.(4)

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(1) O nó é uma unidade de velocidade que corresponde a uma milha marítima (ou 1.853 metros) por hora. Assim, a velocidade da escuna nesse ponto da narrativa chegava a cerca de 20km/h.
(2) Citação imprecisa de London do poema “The Ring and the Book”, livro I, v.1391-92, de Robert Browning: “O lyric love, halfangel and half-bird/ And all of wonder and a wild desire” — em tradução livre, “Oh amor lírico, meio anjo e meio pássaro/ E todo deslumbre e um selvagem desejo.”
(3) Sétima estrofe do poema “The Long Trail”, constante da obra Barrack-Room Ballads (1892), do escritor inglês Rudyard Kipling. Tradução livre: “Oh, flamejantes noites tropicais, quando a esteira é uma faixa de luz/ Domesticando o céu ardente,/ E o talha-mar seguro ronca na superfície pontilhada de planetas/ Em que a baleia inquieta agita a cauda./ As tábuas estão feridas pelo sol, amada,/ E as cordas encolhidas pelo orvalho,/ Pois galgamos a velha trilha, nossa própria trilha, a trilha distante,/ Sotaventeamos ao sul na Longa Trilha, a trilha que sempre é nova.”
(4) Tradução livre: “Oh, sou o vento que os marujos amam —/ Sou forte, constante, confiável;/ Pelas nuvens acima me acompanham/ No trópico azul interminável.// Dia e noite persigo o barco/ Como o cão fiel na caçada/ No sol de rachar e no brilho do luar/ Mantenho a vela esticada.”

Jack London, in O Lobo do Mar

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