Conheci
uma traça que se tornou espírita por ter passado uma temporada
dentro de um volume de Allan Kardec.
Nunca
vi espetáculo mais engraçado do que ouvi-la dissertar sobre a
teoria da reencarnação para o aperfeiçoamento das almas.
Por
mais que eu tentasse convencê-la do absurdo do espiritismo, nada
pude conseguir. Parece que a traça sentia certo bem-estar íntimo.
Certa
vez confessou-me:
– Numa
vida anterior fui um elefante que vivia feliz nas florestas da
Abissínia. Uma tarde, quando me dirigia a um lago para matar a sede,
fui ferido em pleno coração pelo poeta Rimbaud, que negociava com
marfim para esquecer seu sonho de poesia.
– Você,
que me ouve, dizia-me, talvez já tenha sido um tigre e um dia será
uma árvore.
Era
uma traça terrível. Falava com tanto ardor que muitas vezes pensei
que fosse amiga do vinho. Porém, verifiquei com o tempo que
detestava a bebida porque o álcool ataca o fígado. Não era, como
se vê, por virtude que não bebia.
Ainda
me lembro do meu último encontro com a traça. Foi numa noite fria
de agosto. O minuano soprava com tanta força que parecia um demônio
em liberdade. Nesse encontro ela me falou sobre a loucura. Disse-me
que a loucura se dá quando espírito de um morto encarna no corpo de
um ser vivo. O espírito dono do corpo protesta contra o usurpador e
o usurpador resiste; trava-se a luta e a luta é a loucura.
Depois
dessa noite nunca mais a vi. Talvez a esta hora tenha voltado ao
volume de Allan Kardec para resolver alguma dúvida que haja surgido
em seu cérebro teimoso de traça.
Paulo Corrêa Lopes, in Os 100 Melhores Contos de Humor da Literatura Universal. Flávio Moreira da Costa (org.)
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