Redeando
rápido, com o jovem vaqueiro Põe-Põe e o vaqueiro velho Nhácio,
chegava-se à Cambaúba, que é um córrego, pastos, onde se vê voam
o saí-xê, o xexéu, setembro a maio a maria-branca, melhor de
chamar-se maria-poesia, e canta o ano todo a patativa, feliz
fadazinha de chumbo, amiga das sementes.
Após
vargedos, bosques da caparrosa comum surpreendem, em meio à mistura
de espécies do cerrado. Rompia-se por dentro de ervas erguidas um
raso de vale — ao ruído e refecho, cru, de desregra de folhagens —
vindo-nos os esfregados cheiros vegetais ao cuspe da boca. Iam os
cavalos a mais — o céu sol, massas de luz, nuvens drapuxadas,
orvalho perla a pérola. Refartávamos de alegria e farnel. A manhã
era indiscutível. Tantas vias e retas.
— “Iii,
xem, o bem-bom, ver a vez de galopear...” — gabava-se Nhácio,
marrom no justo gibão, que pontas dos grandes galhos em ato de mãos
e dedos ranhavam. — “Ih, é, ah! Ô vida para se viver!”
— impava imitador Põe-Põe, instigando seu azulego.
Dali,
escolhidos, eram os dois. Põe-Põe, bugresco, menino quase, ágil o
jeito na sela-de-campo. Nhácio, ombroso, roxo, perguntador de
rastros, negroide herói. Valiam sobre quaisquer, por gaia companhia
e escolta.
Vinha-se
levíssimo, nos animais, subindo ainda às nuvens de onde havia-se de
cair. Abeirou-se a mata em clausura — e um brejo, que se estendia e
espelhava, lagoa, de regalarem-se os olhos. Os buritis orlavam-no.
Toda água é antediluviana. O ar estava não estava. Ou nem há-de
detalhar-se o imprevisível. A manhã, por si, respirava. Macegão:
lá o angola cresce, excele, tida só a trilha de passarem bois. Ia
tudo pelo claro. A água dormia de mulher. Do capim, alto, aquele
surgiu.
Foi
e — preto como grosso esticado pano preto, crepe, que e quê
espantoso! — subiram orelhas os cavalos. Touro mor que nenhuns
outros, e impossível, nuca e tronco, chifres feito foices, o bojo,
arcabouço, desmesura de esqueleto, total desforma. Seu focinho
estremeceu em nós, hausto mineral, um seco bulir de ventas —
sentíamos sob as coxas o sólido susto dos cavalos. Olhos —
sombrio e brilho — os ocos da máscara. Velho como o ser, odiador
de almas. Deteúdo tangível, rente, o peito, corpo, tirava-nos
qualquer espaço, atônitos em fulminada inércia, no mesmo ar e
respirar. De temor, o cavalo ressona, ronca, uma bulha nas narinas,
como homem que dorme. Aquilo rodou os cornos. Voltava-se e andou, com
estreitos movimentos, patas cavando fundo o tijuco: peso, coisa, o
que a estarrecer. Sozinhão ia beber, no brejo inferior,
minuciosamente. Era enorme e nada. Reembrenhou-se.
Já
arrufados quebravam os cavalos à mão direita, a torto avançava-se,
tenteando grotas, descruzando ramos, nossas costas esfriadas.
Vaqueiro
Nhácio, molhado suado no baixo do pescoço, tremiam-lhe os músculos
da mandíbula. Vaqueirinho Põe-Põe tapava de lado o rosto, decerto
comendo açúcar e farinha. Algum turbar entrecontagiava-nos, sem
reflexão útil.
Põe-Põe
hesitava no por primeiro passar, à beira de pirambeira, e zangava-se
Nhácio, empertigado na sela. — “Ixe, coragem também carece
de ter prática!” Gaguejava desnecessariamente, com grande
razão. Sol e cenho. O redor o olhava.
Remoto,
o touro, de imaginação medonha — a quadratura da besta —
ingenerado, preto empedernido. Ordem de mistérios sem contorno em
mistérios sem conteúdo. O que o azul nem é do céu: é de além
dele. Tudo era possível e não acontecido.
Mas
montávamos à área das colinas, dali longe enxergadas as matas onde
o rio se relega. Tinha-se, sem querer, dado rodeio, tirando do
caminho afastamento de grande arco — torcida a paisagem: um vago
em-torno, estateladas árvores, falsa a modorra das plantas, o
dissabor pastoso.
Errático,
a retrotempo, recordava-se sobre nós o touro, escuro como o futuro,
mau objeto para a memória. Põe-Põe fingia o pio de pássaros em
gaiola, fino assobio. Nhácio ora desabria sacudidos dizeres,
enrolava mais silêncio, ressofrido. O touro, havendo, demais,
exorbitante, suas transitações, e no temeroso ponto, praça ao
acaso.
Adiante
o capim muda de figura, rumo do rio, que a horas envia um relento,
senão um sussurro, e do qual recebem os bois o aviso do cheiro
d’água, que logo põem em mugidos, quando é de oeste que o vento
vem.
Empatara-nos,
aquele, em indisfarce, advindamente; perseguia-nos ainda, imóvel,
por pavores, no desamparadeiro.
O
touro?
Pasmou-se
o velho Nhácio, pendente seu beiço iorubano. — “Mas, é um
marruás manso, mole, de vintém! Vê que viu a gente, encostados
nele, e esbarrou, só assustado, bobo, bobo?” — falara com
grossos estacatos, deu-lhe o sacolejado riso.
Mesmo
nem nos maleficiara — com nenhum agouro, sorvo de sinistro — o
estúrdio bronco monstro. De onde vem então o medo? Ou este
terráqueo mundo é de trevas, o que resta do sol tentando iludir-nos
do contrário. Fazia cansaço, no furto frio de nossas sombras.
Tirávamos passo.
Era,
sim, casado, o vaqueiro Nhácio, carafuz. Nascera no Verde-Grande e
tanto. Tinha filhos, sobrinhos, netos, neste mundo e tanto; o rapaz
Põe-Põe mesmo era um dos seus.
— “Tio
Nhácio, o senhor nunca mais ouviu falar do homem que matou o meu
Pai?” — Põe-Põe indagou, talvez choroso.
O
outro apertava a cilha do alazão. — “Fim que hoje, nunca.
Ideio que acabaram também com ele, até pedras do chão obram as
justiças...”
Aí
em voo os bandos de marrecas, atrás papagaios.
Vaqueiro
o Nhácio, tossidiço, estacou. — “Sirvo mais não, para a
campeação, ach’-que. Tenho mais nenhuma cadência...” —
fungado; tristeza mão-a-mão com a velhice.
— “Ô-xem...”
— e o vaqueiro Põe-Põe abalava fiel a cabeça.
Ainda,
pois, chegava-se — ao rincão, pouso, tetos — rancharia de todos.
Topávamos rede, foguinho, prosa, paz de botequim, à qualquer conta.
A bem-aventurança do bocejo. Desta maneira.
Guimarães Rosa, in Tutameia
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