Cada
vez rareiam mais as informações que temos do exterior — seja da
cidade, seja dos campos — o que me leva a crer que estejamos
realmente sitiados por todos os lados e às vésperas de
acontecimentos funestos e imprevisíveis.
Somente
ontem, e por um acaso, foi que o digno representante do Imperador da
Rússia veio a saber que o Imperador da Rússia não existe, o que o
levou ao desespero por uns instantes e o fez criar um pequeno tumulto
à hora da refeição — não sei dizer se do almoço ou do jantar,
pois que o dia estava muito escuro. Afinal acabou por apaziguar-se
diante das palavras sensatas do Dr. Keither, que lhe fez ver que, não
existindo o Imperador da Rússia, poderia ele muito bem tornar-se
representante do Imperador da Abissínia, e o empossou desde logo no
cargo.
A
efervescência política, aliás, é o clima frequente e em parte já
monótono dessas reuniões à hora do almoço e do jantar, quando
todos procuram ao mesmo tempo defender suas convicções ou a sua
falta de convicções (o meu caso) com o ardor que dá o barulho dos
talheres sobre os pratos ou a simples presença do ensopado com
batatas parcimoniosamente servido pelos garçons. De minha parte,
limito-me a comer e a observar com o rabo do olho meus belicosos
companheiros, só me arriscando a uma opinião qualquer quando a isso
me obriguem as circunstâncias, como no caso daquele cidadão que a
viva força queria convencer-me de que o xá da Pérsia era mais
poderoso do que o xá da índia, que conheci pessoalmente. Não fora
o regulamento do hotel proibir terminantemente o uso de facas durante
as refeições (e também fora delas) e não sei a que guerra civil
seríamos levados diariamente ao calor dessas discussões
aparentemente sem importância, mas na verdade de uma importância
histórica decisiva, como ainda se verá algum dia, ou mesmo alguma
noite.
Mas
o fato é que, para consolar em parte o ainda inconsolável
representante do Imperador da Rússia, que agora o é somente do
Imperador da Abissínia, vi-me na contingência de prometer-lhe
alguns aforismos de minha própria lavra, para a sua coleção de
aforismos célebres ou quase célebres, de que ainda ontem ele
estivera a falar-me em tom de absoluta confidência. Faz em verdade
muito tempo que não me dedico a esse gênero literário em geral tão
apreciado, sobretudo entre os antigos, mas creio que com um pouco de
esforço poderei desincumbir-me da tarefa, tanto mais que hoje, como
todos os dias, o tempo me sobre de uma maneira espantosa e a insônia
me vigia com aquela perseverança de que só ela é capaz. Mas
vejamos o que sai:
*
Os homens, as pulgas e as ratazanas se assemelham nisto: que hoje
estão vivos mas amanhã estarão mortos, irremediavelmente mortos, e
para sempre.
*
O grande pátio onde de manhã tomamos sol nem sempre tem sol, o que
demonstra a incúria do governo e a irresponsabilidade daqueles a
quem pagamos para que nos deem sol
*
Se Napoleão Bonaparte não houvesse existido, que seria de seus
filhos e netos e de todos os seus sósias e falsos sósias, que se
blasonam desses títulos como da coisa mais importante deste mundo?
Que o responda seu sobrinho torto, se é que o é realmente.
• A
mulher do gerente é vesga mas tem um belo par de pernas, o que não
deixa de ser uma compensação. (Não, isto não chega a ser
propriamente um aforismo.)
• À
noite a lua vem da Ásia, mas pode não vir, o que demonstra que nem
tudo neste mundo é perfeito.
• Quando
sair daqui, vou matar a pedradas o médico que matou meu irmão no
hospital e não foi punido até hoje. Pena que ele não possa ouvir
os próprios gritos, pois que é surdo.
• As
flores têm o perfume que a terra lhes dá sem ser perfumada. Assim,
também nós devemos dar a nossos atos aquilo que não trazemos em
nós mas de que somos realmente capazes, e que não morrerá com a
nossa morte.
• Como
o criado da noite veio apagar a luz do meu quarto, este fica sendo o
último aforismo que escrevo, fazendo-o no escuro e sob protesto.
Walter Campos de Carvalho, in A lua vem da Ásia
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