domingo, 24 de julho de 2022

A lua vem da Ásia | Capítulo 99

Cada vez rareiam mais as informações que temos do exterior — seja da cidade, seja dos campos — o que me leva a crer que estejamos realmente sitiados por todos os lados e às vésperas de acontecimentos funestos e imprevisíveis.
Somente ontem, e por um acaso, foi que o digno representante do Imperador da Rússia veio a saber que o Imperador da Rússia não existe, o que o levou ao desespero por uns instantes e o fez criar um pequeno tumulto à hora da refeição — não sei dizer se do almoço ou do jantar, pois que o dia estava muito escuro. Afinal acabou por apaziguar-se diante das palavras sensatas do Dr. Keither, que lhe fez ver que, não existindo o Imperador da Rússia, poderia ele muito bem tornar-se representante do Imperador da Abissínia, e o empossou desde logo no cargo.
A efervescência política, aliás, é o clima frequente e em parte já monótono dessas reuniões à hora do almoço e do jantar, quando todos procuram ao mesmo tempo defender suas convicções ou a sua falta de convicções (o meu caso) com o ardor que dá o barulho dos talheres sobre os pratos ou a simples presença do ensopado com batatas parcimoniosamente servido pelos garçons. De minha parte, limito-me a comer e a observar com o rabo do olho meus belicosos companheiros, só me arriscando a uma opinião qualquer quando a isso me obriguem as circunstâncias, como no caso daquele cidadão que a viva força queria convencer-me de que o xá da Pérsia era mais poderoso do que o xá da índia, que conheci pessoalmente. Não fora o regulamento do hotel proibir terminantemente o uso de facas durante as refeições (e também fora delas) e não sei a que guerra civil seríamos levados diariamente ao calor dessas discussões aparentemente sem importância, mas na verdade de uma importância histórica decisiva, como ainda se verá algum dia, ou mesmo alguma noite.
Mas o fato é que, para consolar em parte o ainda inconsolável representante do Imperador da Rússia, que agora o é somente do Imperador da Abissínia, vi-me na contingência de prometer-lhe alguns aforismos de minha própria lavra, para a sua coleção de aforismos célebres ou quase célebres, de que ainda ontem ele estivera a falar-me em tom de absoluta confidência. Faz em verdade muito tempo que não me dedico a esse gênero literário em geral tão apreciado, sobretudo entre os antigos, mas creio que com um pouco de esforço poderei desincumbir-me da tarefa, tanto mais que hoje, como todos os dias, o tempo me sobre de uma maneira espantosa e a insônia me vigia com aquela perseverança de que só ela é capaz. Mas vejamos o que sai:
* Os homens, as pulgas e as ratazanas se assemelham nisto: que hoje estão vivos mas amanhã estarão mortos, irremediavelmente mortos, e para sempre.
* O grande pátio onde de manhã tomamos sol nem sempre tem sol, o que demonstra a incúria do governo e a irresponsabilidade daqueles a quem pagamos para que nos deem sol
* Se Napoleão Bonaparte não houvesse existido, que seria de seus filhos e netos e de todos os seus sósias e falsos sósias, que se blasonam desses títulos como da coisa mais importante deste mundo? Que o responda seu sobrinho torto, se é que o é realmente.
A mulher do gerente é vesga mas tem um belo par de pernas, o que não deixa de ser uma compensação. (Não, isto não chega a ser propriamente um aforismo.)
À noite a lua vem da Ásia, mas pode não vir, o que demonstra que nem tudo neste mundo é perfeito.
Quando sair daqui, vou matar a pedradas o médico que matou meu irmão no hospital e não foi punido até hoje. Pena que ele não possa ouvir os próprios gritos, pois que é surdo.
As flores têm o perfume que a terra lhes dá sem ser perfumada. Assim, também nós devemos dar a nossos atos aquilo que não trazemos em nós mas de que somos realmente capazes, e que não morrerá com a nossa morte.
Como o criado da noite veio apagar a luz do meu quarto, este fica sendo o último aforismo que escrevo, fazendo-o no escuro e sob protesto.

Walter Campos de Carvalho, in A lua vem da Ásia

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