Vieram
ciganos consertar as tachas de açúcar da Fazenda Crispins, sobre
cachoeira do Riachão e onde há capela de uma Santa rezada no mês
de setembro. Dois, só, estipulara o dono, que apartava do laço o
assoviar e a chuva da enxurrada, fazendeiro Senhozório; nem tendo os
mais ordem de abarracar ali em terras.
Eram
os sobreditos Guitchil e Rulú, com arteirice e utensílios — o
cobre, de estranja direto trazido, a pé, por cima de montanhas.
Senhozório tratara-os à empreita, podiam mesmo dormir no engenho; e
pôs para vigiá-los o filho, Siozorinho.
Sua
mulher, fazendeira Siantônia, receava-os menos pela rapina que por
estranhezas; ela, em razão de enfermidade, não saía da cama ou
rede. Sinhalice e Sinhiza, filhas, ainda que do varandão, de alto,
apreciaram espiar, imaginando-lhes que cor os olhos: o moço, sem par
no sacudir o andar; o mais velho se abanando vezes com ramo de flor.
À noite, em círculo de foguinho, perto do chiqueiro, um deles
tocava violão.
Já
ao fim de dia, Siozorinho relatou que forjavam com diligência.
Senhozório, visse desplante em ciganos e sua conversa, se bem crendo
poupar dinheiro no remendo das tachas, só recomendou aperto. Sinhiza
porém e Sinhalice ouviram que aqueles enfiavam em cada dedo anéis,
e não criavam apego aos lugares, de tanto que conhecessem a
ligeireza do mundo; as cantigas que sabiam, eram para aumentar a
quantidade de amor.
O
moço recitava, o mais velho cabeceando qual a completar os dizêres,
em roméia, algaravia de engano senão de se sentir primeiro que
entender. O mais velho tinha cicatrizes, contava de rusga sem mortes
em que um bando inteiramente tomara parte, até os cavalos se mordiam
no meio do raivejar.
Siantônia,
que sofria de hidropisias e dessuava retendo em pesadelo criaturas
com dobro de pernas e braços, reprovou se acomodasse o filho a
feitorar hereges. Senhozório de todos discordava, a taque de
sílabas, só o teimosiar e raros cabelos a idade lhe reservara, mais
o repetir que o lavrador era escravo sem senhor.
Não
era verdade que, de terem negado arrimo a José, Maria e Jesus,
pagassem os gitanos maldição! — Siozorinho no domingo definiu,
voltado de onde fora-de-raia esses acampavam, com as velhas e moças
em amarelos por vermelhos. Mas, para arranjar o alambique, de mais um
companheiro precisavam, perito em serpentinas. Senhozório àquilo
resistiu, dois dias. Veio ao terceiro o rapaz Florflor: davam-lhe os
cachos pelo meio lado da cara, e abria as mãos, de dedos que eram só
finura de ferramentas. Dessa hora mais no engenho operaram, à racha,
o dia em bulha. Sinhalice e Sinhiza pois souberam que Florflor ao
entardecer no Riachão se banhava. Outra feita, ria-se, riam, de
estrépitas respostas: — Cigano non lava non, ganjón, para non
perder o cheiro... — certo o que as mulheres deles estimavam,
de entre os bichos da natureza.
Ousaram
pedir: para, trajados cujos casacões, visitarem a Virgem. Siantônia
cedeu, ela mesma em espreguiçadeira recostada, pé do altar, ao
aceso de velas. Os três se ajoelharam, aqueles aspectos. Outro tanto
veneravam a fazendeira: — Sina nossa, dona, é o descanso
nenhum, em nenhuma parte — arcavam nucas de cativos. — O
rei faraó mandou... — decisão que não se terminava.
Siantônia, era ela a derivada de alto nome, posses; não Senhozório,
só de míngua aprendedor, de aflições. Avós e terras, gado, as
senzalas; agora, sombria, ali, tempo abaixo, a curso, sob manta de
vexame, para o fôlego cada dia menos ar, em amplo a barriga de sapa.
As filhas contudo admiraram-lhe o levantado gesto, mão osculosa,
admitindo que todos se afastassem.
— Tristes,
aá, então estamos! — a seguir os três na tarefa martelavam,
tanto quanto adjurando a doença da senhora. E alfim: se buscassem as
parentas, lembraram, as das drogas? A cigana Constantina, a cigana
Demétria; ainda que a quieto, dessas provinha pressa sem causa. A
outra — moça — pêssega, uma pássara. Dela vangloriavam-se: —
Aníssia... — pendiam-lhe as tranças de solteira e refolhos
cobrissem furtos e filtros, dos alindes do corpete à saia rodada, a
roçagar os sapatos de salto.
Siantônia
em prêmito de ofego a quis perto. Era também palmista, leu para
Sinhiza e Sinhalice a boa-ventura. Siozorinho nela dera com olhos que
fácil não se retiravam. Senhozório contra quentes e brilhos
forçava-se a boca. Ceca e meca e cá giravam os ciganos; mas
quem-sabe o real possuir só deles fosse? — e de nenhum alqueire.
Senhozório,
Siantônia o espiava — no mundo tudo se consumia em erro, tirante
ver o marido envelhecido igual — vizinhalma. Esquecera ela as
pálpebras, deixava que as gringas benzeduras lhe fizessem;
fortunosas aquelas, viventes quase à boca dos ventos.
— Aqui
todos juntos estamos... — Siantônia extremosa ansiosa se
segurava aos seus, outra vez dera de mais arfar, piorara. As paredes
era que ameaçavam. A gente devia estar sempre se indo feito a
Sagrada Família fugida.
Com
tal que o conserto rematavam os ciganos, eeé, bré! Senhozório
agora via: o belo metal, o belo trabalho. A esquisita cor do cobre. —
Vosmicê, gajão patrão, doradiante aumente vossos canaviais!
— os cujos botavam alarde. Crer que, aqueles, lavravam para o rei,
a gente não os podendo ali ter sempre à mão, para quanto encanto.
As tachas pertenciam à Fazenda Crispins, de cem anos de eternidade.
E
houve a rebordosa. Concorridos de repente, a cavalo todos, enchiam a
beira do engenho, eram o bando, zingaralhada. — Mercês! —
perseguidos, clamavam ajuda; e pela ganjã castelã prometiam rezar
em matrizes e ermidas. — Ah, manucho! — vocavam
Siozorinho.
À
frente, montadas de banda, as ciganas Demétria e Constantina. Rulú,
barba em duas pontas. Guitchil o com topete. Aníssia, de escanchadas
pernas, descalça, como um deleite e alvor. Recordavam motes: —
Vós e as flores... — em impo, finaldo entoou Florflor, o
Sonhado Moço. Vinha de um romance, qual que se suicidado por paixão,
pulando no rio, correntezas o rodavam à cachoeira... — Sinhalice
caraminholava.
Já
armada vinha a gente da terra, contra eles, denunciados: porquanto os
ladinos, tramposos, quetrefes, tudo na fingitura tinham perfeito, o
que urdem em grupo, a fito de pilharem o redor, as fazendas. Diziam
assim. Sanhavam por puni-los, pegados.
— Vós...
— os quicos apelavam para o Senhor. Senhozório ficou do
tamanho do socorro.
— Aqui,
não buliram em nada... — em fim ele resolveu, prestava-lhes
proteção, já se viu, erguido o pulso. Mais não precisava. Tiravam
atrás os da acossa, desfazendo-se, por maior respeito. Senhozório
mandava. Os ciganos eram um colorido. Louvavam-no, tão, à rapa de
guais, xingos, cantos, incutiam festa da alegre tristeza.
Saíam
embora agora, adeus, adeus, à farrapompa, se estugando, aquela
consequência, por toda a estrada. Siantônia queria: se um dia eles
voltavam à Terra-Santa... Sinhiza sozinha podia descer, aonde em
fogo de sociedade à noite antes tangiam violão, ao olor odor de
laranjeiras e pocilgas, já de longe mesclados. Indo tanto a certo
esmo, se salvos, viver por dourados tempos, os ciganos, era fim de
agosto, num fechar desapareciam.
A
Fazenda Crispins parava deixada no centro de tantas léguas, matas,
campos e várzeas, no meio do mundo, debaixo de nuvens.
Senhozório,
sem se arreminar, não chamou o filho, da melancolia: houvesse este
ainda de invejar bravatas. Ia porém preto lidar, às roças, às
cercas, nas mãos a dureza do calêjo. Cabisbaixado, entrequanto.
Perturbava-o o eco de horas, fantasia, caprichice. Dali via o rumo do
Riachão, vão, veio à beira, onde as árvores se usurpam. A água —
nela cuspiu — passante, sem cessação. — Quando um dia um for
para morrer, há-de ter saudade de tanta coisa... — ele só se
disse, pegou o mugido de um boi, botou no bolso. Andando à-toa,
pisava o cheiro de capins e rotas ervas.
Guimarães Rosa, in Tutameia
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