sábado, 16 de julho de 2022

Bagagem

Ele tinha o costume de gesticular seu pensamento,
de sorte que estar parado era já ter compreendido
ou não ter dúvidas. Foi um abalo enorme quando se deu o que conto,
porque ultimamente ocupava a compreensão em tomar os remédios,
não comer sal, medir cor e volume de sua urina difícil.
Sem que ninguém suspeitasse ficou em pé na sala
e começou a cantar, pondo e tirando da jarra o galhinho de flor,
a voz como antes, firme, alta, grossa, anterior
a qualquer debilidade do seu corpo.
Um susto às avessas do susto foi o nosso,
porque a barriga dele continuava altíssima e alagava a mina
rompida de sua perna. Fugimos como nas guerras.
Um de nós foi chorar na privada, outro no quintal,
eu inventei uma barata pra matar com um chinelo.
A alegria dele desertava, quase, do que fosse
uma alegria humana e não estávamos à altura de entendê-la.
Sofrer era muito mais fácil.

Adélia Prado, in Bagagem

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