A
troca da bola de meia para a bola de borracha foi uma importante
evolução técnica do association em nossa rua. Nossa
primeira bola de borracha era branca e pequena; um dia, entretanto,
apareceu um menino com uma bola maior, de várias cores, belíssima,
uma grande bola que seus pais haviam trazido do Rio de Janeiro. Um
deslumbramento; dava até pena de chutar. Admiramo-la em silêncio;
ela passou de mão em mão; jamais nenhum de nós tinha visto coisa
tão linda.
Era
natural que as Teixeiras não gostassem quando essa bola partiu uma
vidraça. Nós todos sentimos que acontecera algo de terrível.
Alguns
meninos correram; outros ficaram a certa distância da janela,
olhando, trêmulos, mas apesar de tudo dispostos a enfrentar a
catástrofe. Apareceu logo uma das Teixeiras, e gritou várias
descomposturas. Ficamos todos imóveis, calados, ouvindo, sucumbidos.
Ela
apanhou a bola e sumiu para dentro de casa. Voltou logo depois e, em
nossa frente, executou o castigo terrível: com um grande canivete
preto furou a bola, depois cortou-a em duas metades e jogou-a à rua.
Nunca
nenhum de nós teria podido imaginar um ato de maldade tão
revoltante. Choramos de raiva; apareceram mais duas Teixeiras que
davam gritos e ameaçavam descer para nos puxar as orelhas. Fugimos.
A
reunião foi junto do cajueiro do morro. Nossa primeira idéia de
vingança foi quebrar outras vidraças a pedradas. Alguém teve um
plano mais engenhoso: dali mesmo, do alto do morro, podíamos quebrar
as vidraças com atiradeiras, e assim ninguém nos veria. — Mas
elas vão logo dizer que fomos nós!
Alguém
informou que as Teixeiras iam todas no dia seguinte para uma festa na
fazenda, um casamento ou coisa que o valha. O plano de assalto à
casa foi traçado por mim. A casa das Teixeiras dava os fundos para o
rio e uma vez, em que passeava de canoa, pescando aqui e ali, eu
entrara em seu quintal para roubar carambolas. Havia um cachorro, mas
era nosso conhecido, fácil de enganar.
Falou-se
muito tempo dos ladrões que tinham arrombado a porta da cozinha da
casa das Teixeiras. Um cabo de polícia esteve lá, mas não chegou a
nenhuma conclusão. Os ladrões tinham roubado um anel sem muito
valor, mas de grande estimação, com monograma, e tinham feito uma
desordem tremenda na casa; havia vestidos espalhados pelo chão, um
tinteiro e uma caixa de pó-de-arroz entornados em um quarto, sobre
uma cama. Falou-se que tinha desaparecido dinheiro, mas era mentira;
lembro-me vagamente de uma faca de cozinha, um martelo, uma lata de
goiabada; isso foi todo o nosso botim.
O
anel foi enterrado em algum lugar no alto do morro; mas alguns dias
depois caiu um temporal e houve forte enxurrada; jamais conseguimos
encontrar o nosso tesouro secretíssimo, e rasgamos o mapa que
havíamos desenhado.
Durante
algum tempo as famílias da rua fecharam com mais cuidado as portas e
janelas, alguns pais de família saltaram assustados da cama a
qualquer ruído, com medo dos ladrões; mas eles não apareceram
mais.
Nosso
terrível segredo nos deu um grande sentimento de importância, mas
nunca mais jogamos futebol diante da casa das Teixeiras. Deixamos de
cumprimentar a que abrira a bola com o canivete; mesmo anos depois,
já grandes, não lhe dávamos sequer bom-dia. Não sei se foi feliz
na existência, e espero que não; se foi, é porque praga de menino
não tem força nenhuma.
Rubem Braga, in A traição das elegantes
Nenhum comentário:
Postar um comentário